Impacto global, imunofisiopatologia e clínica

Dengue

É uma doença febril com manifestações clínicas que variam desde uma infecção assintomática até uma infecção grave com disfunção multiorgânica

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Introdução

A dengue é uma das infecções virais transmitidas por mosquitos mais importantes e de rápido crescimento. Além disso, resulta em grande preocupação para a saúde pública devido aos possíveis resultados letais da infecção grave.

A incidência mundial tem crescido exponencialmente nos últimos anos e quase a metade da população mundial está em risco.

Estima-se que todos os anos há entre 100 e 400 milhões de novas infecções, embora este número possa estar muito abaixo do que foi reportado já que as redes de vigilância não são sólidas na maioria dos países tropicais.

Historicamente, a primeira descrição da dengue remonta ao início do século XIX, nas ilhas do Caribe. Mais tarde, acreditou-se que a doença tenha sido introduzida no Novo Mundo vinda da África durante o comércio de escravos. Desde então, passou por muitos marcos onde a gravidade da infecção mudou para formas mais graves, atraindo cada vez mais atenção em todo o mundo.

Características do vírus

O vírus da dengue (VD) é um vírus pequeno, esférico, de RNA de fita simples com 10.700 bases. Pertence ao gênero Flavivírus da família Flaviviridae. Outros membros conhecidos deste gênero são os vírus do Nilo Ocidental, Zika e encefalite transmitida por carrapatos.

É composto por 3 proteínas estruturais e 7 não estruturais. Dependendo das diferenças entre elas, distinguem-se 4 sorotipos: DEN1 a DEN4. Devido às mutações do vírus, às vezes a gravidade da infecção varia, e é assim que os genótipos foram descritos, por exemplo, A e B em DEN3.

A infecção com cada sorotipo confere imunidade vitalícia ao sorotipo causador, mas não aos outros sorotipos.

Em contraste, a reinfecção com um sorotipo diferente causa doença grave. Durante décadas, surtos periódicos devido a diferentes sorotipos ocorrem numa determinada região, pelo que o desenvolvimento de imunidade de grupo em toda a comunidade para todos os 4 sorotipos não é alcançável e a doença pode permanecer sem eliminação natural.

Imunopatogênese

A dengue é transmitida entre pessoas através da picada de um mosquito infectado. O principal vetor é o mosquito Aedes aegypti, que é um mosquito muito doméstico, que pica durante o dia e se reproduz em recipientes com água no peridomicílio. Seus ovos poderiam sobreviver sem dessecação em um ambiente seco durante meses. Seu ciclo de vida começa no primeiro contato com a água. Aedes albopictus é um vetor secundário da dengue, confinado a algumas regiões do mundo; é chamado de “mosquito tigre” devido à sua morfologia característica.

> Ciclo florestal/enzoonótico – Mosquitos Aedes e primatas baixos em florestas tropicais.

> Ciclo rural/endémico - ocorre em pequenas cidades ou ilhas onde a transmissão está contida. Com o tempo, o vírus desaparece com o desenvolvimento da imunidade coletiva.

> Ciclo urbano/epidêmico/endêmico – em grandes áreas urbanas nos trópicos, epidemias periódicas com múltiplos sorotipos.

Após a picada de um mosquito infectado, a replicação viral inicial ocorre nas células dendríticas subdérmicas de Langerhans e depois o vírus migra para os gânglios linfáticos regionais. A viremia ocorre através de monócitos e macrófagos circulantes e infecta órgãos sólidos e medula óssea.

Como a maioria das infecções virais, a dengue é uma infecção autolimitada da qual a maioria dos pacientes se recupera sem complicações – isso é chamado de dengue (DF).

Em contraste, a febre hemorrágica da dengue (FHD) é a forma grave, caracterizada pelo aumento da permeabilidade vascular, levando ao extravasamento de plasma e tendência à hemorragia.

O aumento da permeabilidade vascular é de curta duração e consiste no vazamento de plasma para os espaços peritoneais, cavidade pleural e para os planos teciduais denominados terceiro espaço. Isto provavelmente se deve ao aparecimento de uma resposta imune anormal com a produção de citocinas, também chamada de “tempestade de citocinas”. A resposta imune anormal resultou em aumento da permeabilidade microvascular sem inflamação ou vasculite, e levou a mecanismos reguladores alterados.

O aumento imunológico dependente de anticorpos é um fenômeno conhecido no qual há um risco aumentado de FHD quando há preexistência de anticorpos DENV contra um sorotipo diferente, que são anticorpos não neutralizantes. Os complexos imunes formados são compostos por anticorpos não neutralizantes do DENV contra um sorotipo ligado ao DENV atual, que teria a capacidade de corrigir, complementar e se ligar aos receptores Fc da superfície celular, facilitando a entrada viral nas células fagocíticas (macrófagos).

Este processo é denominado opsonização. A replicação viral exponencial ocorre dentro da célula fagocítica devido ao efeito opsonizante e o resultado é o desenvolvimento de intensa viremia.

Nos casos de viremia grave, a possibilidade de FHD grave é alta, podendo até causar choque, denominado síndrome do choque da dengue (SCD).

Classificação

A OMS desenvolveu muitas classificações de infecção por dengue. A de 1997 descreveu subgrupos de ICD e não teve muita aplicação clínica. Atualmente, uma nova categorização dividiu os casos de dengue em 2 categorias: não graves e graves.

A não grave é subdividida em pacientes com e sem sinais de alerta. Para estabelecer um caso provável de dengue em um paciente que mora ou viajou para área endêmica, deve apresentar febre e dois dos seguintes critérios:

• náusea e vomito

• irritação na pele

• dores no corpo

• teste do torniquete positivo

• leucopenia.

Isto precisa de confirmação adicional com testes laboratoriais.

Na dengue grave, os sinais de alerta indicam um vazamento plasmático iminente que progride para um estado de hipovolemia, hipoperfusão tecidual e sangramento.

Esses sinais de alerta incluem dor abdominal, vômito persistente, sangramento, letargia e inquietação, hepatomegalia e evidência de hemoconcentração em exames laboratoriais, refletida como aumento do hematócrito e rápido declínio na contagem de plaquetas.

A classificação clínica acima é útil no manejo de pacientes; entretanto, para compreender o quadro completo da fisiopatologia, ambas as classificações são necessárias.

Manifestações clínicas

Após um período de incubação de 3 a 7 dias, ocorre um início abrupto dos sintomas, principalmente febre alta, dor de cabeça retro orbital e dor no corpo. Normalmente, o curso clínico segue 3 fases: febril, crítico e de recuperação. Aqueles que desenvolvem FHD passam pelas 3 fases; mas o grupo da dengue com dengue não passa pela fase crítica.

> Fase febril

Essa fase geralmente dura de 3 a 7 dias e se manifesta por grande aumento de temperatura, dor de cabeça, artralgia, mialgia, dor nas costas e anorexia. Ocasionalmente, há sintomas do trato respiratório superior e gastrointestinais. Mau estado geral, eritema cutâneo generalizado com ou sem erupções eritematosas morbiliformes e ilhas de áreas pálidas são comuns.

Na última parte da fase febril, podem aparecer manifestações cutâneas hemorrágicas, como petéquias, púrpura ou equimoses. Também pode ocorrer dor no quadrante superior direito ou hepatomegalia leve. A partir do segundo dia de febre, o hemograma mostra leucopenia, trombocitopenia e aumento do hematócrito. É comum um aumento nas transaminases hepáticas. O padrão de temperatura pode ser bifásico.

> Fase crítica

Uma proporção de pacientes entrará na fase crítica, evidenciada por vazamento vascular sistêmico, que geralmente ocorre com diminuição temporária da febre. É reconhecida pelo aumento da concentração plasmática evidenciado pelo aumento do hematócrito. O vazamento vascular ocorre preferencialmente para o espaço peritoneal e pode ser detectado precocemente pela ultrassonografia abdominal, que mostra edema da parede da vesícula biliar e acúmulo de líquido pericolecístico. Indiretamente, o aparecimento de sinais de alarme indica a entrada na fase crítica.

Os mecanismos compensatórios fisiológicos iniciais do vazamento de plasma levarão a uma redução na pressão de pulso, mas se permanecer não detectado ou tratado, o paciente irá descompensar, levando a choque grave e disfunção de múltiplos órgãos.

Aumento do hematócrito superior a 20% do valor inicial e hipoalbuminemia são outros indicadores da fase crítica.

O vazamento vascular pode durar de 24 a 48 horas e geralmente é de natureza dinâmica, atingindo o pico 24 horas após o início. Esta fase está associada ao aumento do risco de sangramento e disfunção hepática.

> Fase de recuperação

Nesta fase, o vazamento vascular sistêmico cessa e o líquido extravasado do terceiro espaço começa a ser reabsorvido. Esta fase é reconhecida clinicamente, pois o paciente apresenta uma melhora acentuada em seu estado geral, enquanto alguns desenvolvem erupção na pele com coceira. Bradicardia, chamada bradicardia de recuperação, também é observada. A hemodiluição leva a uma queda no hematócrito e a um rápido aumento na contagem de glóbulos brancos, seguido de aumento nas plaquetas. Aparece poliúria, levando até à desidratação.

> Outras apresentações estendidas

A dengue incomum ou dengue expandida é descrita como uma afecção multissistêmica distinta do vazamento de plasma.

• Neurológica – encefalite, encefalopatia, neuropatias, síndrome de Guillain-Barré

• Hepatite gastrointestinal, colecistite, pancreatite, necrose hepática hemorrágica

• Nefrite renal

• Cardíaca – miocardite, pericardite

• Miosite musculoesquelética

• Linfo-histiocitose hematológica-hemofagocítica, trombocitopenia imune

Estudos post-mortem subsequentes detectaram RNA de DENV na maioria dos órgãos e tecidos do corpo, o que implica que o vírus pode infectar sistemas orgânicos, causando inflamação e disfunção.

A gravidade da miocardite pode variar, enquanto na miocardite grave as mortes são inevitáveis. Da mesma forma, a necrose hemorrágica do fígado traz um prognóstico ruim. Isquemia hepática, choque e sepse bacteriana por períodos prolongados também são causas que contribuem para o desenvolvimento de insuficiência hepática secundária fulminante.

Diagnóstico

O diagnóstico pode ser confirmado com dados laboratoriais, seja diretamente pela detecção de componentes virais no sangue ou indiretamente, através de resultados sorológicos. A escolha do teste depende do momento da apresentação clínica.

Durante a fase febril inicial, a detecção de componentes virais na circulação é altamente sensível. O ácido nucleico viral no soro pode ser detectado pela reação em cadeia da polimerase via transcriptase reversa (RT-PCR) ou pela detecção da proteína não estrutural solúvel 1 expressa pelo vírus, por ensaio imunoenzimático (ELISA).

A sorologia para detecção de IgM e IgG ocorre a partir do quinto dia de doença e também ajuda a decidir entre infecção primária ou secundária por dengue. Um título elevado de anticorpos contra hemaglutinina sugere infecção secundária por dengue.

Manejo

A diretriz da OMS sobre o manejo clínico da dengue fornece detalhes sobre a tomada de decisões em casa ou no hospital. Consequentemente, no início da doença, um paciente pode cair em um dos 3 grupos: A, B ou C.

Aqueles que atendem aos critérios do grupo A podem ser tratados em casa, sob supervisão. O Grupo C precisa ser hospitalizado. Por outro lado, os países têm suas próprias diretrizes para o manejo da dengue. Não existe medicamento antiviral para esta doença, apesar da sua grave ameaça para a humanidade.

> Manejo sintomático

Durante a fase febril, os pacientes são aconselhados a manter uma ingestão adequada de líquidos por via oral e a tomar paracetamol como antipirético. Os anti-inflamatórios não esteroides devem ser evitados devido ao risco de sangramento no contexto de trombocitopenia grave.

Os pacientes são aconselhados a consultar um médico caso apresentem sinais de alerta (vômitos e diarreia persistentes, tonturas posturais, manifestações hemorrágicas ou dores abdominais).

> Manuseio de líquidos

A base do manejo da dengue é a ressuscitação meticulosa com fluidos, particularmente na fase crítica, quando o vazamento de plasma coincide com a taxa de administração de fluidos. Estas recomendações baseiam-se na opinião de especialistas e em muitas suposições.

Algumas diretrizes recomendam o cálculo da quantidade de líquidos para o período presumido de 48 horas da fase crítica, que envolve líquidos de manutenção e déficit hídrico de 50 ml/kg (até 50 kg), administrados durante o período de 48 horas da fase crítica ... crítica. Por fim, foram adicionados 4.600 ml para uma pessoa com peso superior a 50 kg durante 48 horas.

A justificativa para o manejo hídrico na fase crítica é manter o compartimento intravascular com reposição adequada, evitando sobrecarga. Para isso, o clínico deve estar muito atento e a administração de líquidos deve ser aumentada ou diminuída gradativamente, com base nos parâmetros clínicos, na diurese e no grau de hemoconcentração.

O tratamento de primeira linha são os cristaloides. A fluidoterapia de segunda linha mais segura são os coloides (dextrano 40, hetastarch). Bolus de cristaloides não são recomendados devido à resposta inadequada.

O objetivo do manejo de fluidos é manter uma boa perfusão e um débito urinário em torno de 0,5 ml/kg/h. As diretrizes fornecem algoritmos para o manejo do choque da dengue. Por outro lado, a correção da acidose, glicemia e calcemia é importante durante a evolução clínica da dengue.

> Produtos sanguíneos

As transfusões de plaquetas estão indicadas em pacientes com sangramento intenso, manifestações com trombocitopenia ou que necessitam de cirurgia de emergência. No entanto, a sobrevivência das plaquetas transfundidas é muito curta. Há evidências em evolução para o uso de transfusões de sangue em dengue complicada, como sangramento grave, comprometimento hepático grave ou acidose refratária.

> Esteroides

Embora existam alguns estudos que descrevem o benefício dos esteroides na FHD, são necessários mais dados de grandes estudos para fazer recomendações sobre o seu uso. No entanto, as opiniões clínicas favorecem o benefício dos esteroides na miocardite por dengue.

> Imunoglobulinas

O uso de imunoglobulina em choque e dengue grave com trombocitopenia foi descrito em pequenas coortes de estudos, mas até o momento os dados são insuficientes para fazer recomendações.

> Outros tratamentos

O envolvimento hepático associado à dengue é frequentemente observado e pode evoluir para insuficiência hepática fulminante. Alguns estudos mostram que o uso cauteloso de N-acetilcisteína em pacientes com transaminases aumentadas foi benéfico.

Antibióticos não são recomendados rotineiramente, mas podem ser indicados se ocorrer sepse bacteriana secundária, resultante de leucopenia e paresia imunológica, pois pode ocorrer choque séptico grave.

Desenvolvimento de vacinas

O desenvolvimento de vacinas contra DV tem sido um grande desafio por vários motivos. A vacina tem de cobrir todos os 4 sorotipos, caso contrário poderá ocorrer um reforço imunitário, pelo que a esperança é produzir uma vacina quadrivalente.

Por outro lado, a fisiopatologia da RV ainda não foi elucidada e não existe modelo animal para recriar o processo humano. Tudo isso dificulta o desenvolvimento de vacinas candidatas. A primeira vacina Dengvaxia licenciada (CYDTDV), autorizada em 2015, teve muitos problemas e muitos investigadores estão atualmente a trabalhar para desenvolver uma vacina melhor dirigida aos 4 sorotipos.