Otimização dos resultados

Tratamento de queimaduras não graves em crianças e adolescentes

Fatores-chave e intervenções antes da admissão hospitalar e após a alta para melhorar os resultados de queimaduras pediátricas

Autor/a: Leila Cuttle, Mark Fear, Fiona M Wood, Roy M Kimble, Andrew J A Holland

Fuente: Lancet Child Adolesc Health 2022; 6: 26978

Indice
1. Texto principal
2. Referencia bibliográfica
Resumo

Lesões por queimaduras na pediatria são comuns, especialmente em crianças menores de 5 anos, e podem levar a problemas físicos e psicossociais de longo prazo. Com isso, Cuttle e colaboradores (2022) resumiram os principais fatores e intervenções antes da internação hospitalar e após a alta que podem melhorar os desfechos de queimaduras pediátricas a longo prazo.

O atendimento pode ser otimizado por tratamento de primeiros socorros, a avaliação inicial correta da gravidade da queimadura e do encaminhamento do paciente para um centro de queimaduras.  A prevenção ou tratamento de cicatrizes e o acompanhamento do paciente após a alta também são essenciais.

Uma vez que a maioria das queimaduras em crianças são relativamente pequenas e fáceis de sobreviver, a revisão não abrangeu o manejo perioperatório associado a queimaduras graves que requerem ressuscitação com fluidos ou lesões por inalação.

As queimadas afetam desproporcionalmente crianças de baixo nível socioeconômico e aquelas que vivem em países de baixa e média renda, com amplas evidências sugerindo que ainda há escopo para intervenções de baixo custo para melhorar o atendimento aos pacientes com maior carga de queimaduras. 

Introdução

As queimaduras pediátricas são comuns. Em 2018, aproximadamente 110.000 crianças menores de 16 anos se apresentaram a um pronto-socorro nos EUA com uma lesão de queimadura.1

No Reino Unido, um estudo que analisou estatísticas do Clinical Practice Research Data Link e do National Health Service (conhecido como NHS) entre 2013 e 2015 forneceu uma estimativa de mais de 35.000 atendimentos de emergência para crianças de 0 a 15 anos e mais de 8.500 internações por ano.2 Esses números são maiores para crianças em países de baixa e média renda (PBMR), e aproximadamente 70% do total das queimaduras (em todas as idades) ocorrem globalmente em PBMR.3

A idade de pico para queimaduras pediátricas é em crianças menores de 2 anos;4,5 em geral, aquelas com menos de 5 anos de idade são particularmente vulneráveis a queimaduras devido ao aumento da mobilidade, curiosidade, percepção imatura de risco, e resposta de abstenção atrasada ou ausente.5,6

As causas mais comuns de queimaduras em pessoas em países de alta renda são devido a temperatura da água de banho, bebidas, alimentos ou fogões quentes, e queimaduras de contato com carvão, tubos de escape ou eletrodomésticos.4,7

Novos padrões de queimaduras estão constantemente emergindo: exemplos incluem queimaduras associadas a alisadores de cabelo ou enroladores,8 e cigarros eletrônicos.9

A maioria das queimaduras pediátricas são pequenas a médias em tamanho e afetam menos de 10% da área da superfície corporal total (ASCT), enquanto quase dois terços afetam menos de 5%.4

Dados populacionais que acompanham a saúde a longo prazo de pacientes com queimaduras mostraram que a mortalidade ajustada por idade é 1,6 vezes maior em crianças após tal lesão. Essa estatística permanece elevada para pacientes com queimaduras não graves inferiores a 20% de ASCT (mortalidade 1,4 vezes maior por idade).10 Além disso, crianças com queimaduras têm risco aumentado de desenvolver condições crônicas como diabetes,11 doença circulatória,12 condições musculoesqueléticos,13 condições de saúde mental,14 e infecções respiratórias.15

 Em alguns casos, esse risco de morbidade crônica é maior na coorte de queimaduras não severa do que na coorte de queimaduras graves,12,16 o que provavelmente se deve as poucas queimaduras graves que poderiam ser analisadas e o possível viés de sobrevivência daqueles pacientes que sobreviveram após queimaduras graves. Se essas morbidades são decorrentes de uma resposta ao estresse crônico, a uma função de doença crônica em uma família de baixo nível socioeconômico, à queimadura alterando a expressão do genoma do paciente, ou uma combinação desses e outros fatores não está claro.

As cicatrizes de queimaduras também têm impacto social, associada a mudanças na aparência,17 com efeitos subsequentes que alteram a frequência escolar e o desempenho.18

Um estudo que ligou 1556 crianças (<16 anos) com queimaduras em Nova Gales do Sul, Austrália, descobriu que elas eram mais propensas a se ausentar de avaliações escolares   padronizadas nacionais e alcançar pontuações de teste menores do que os participantes de controle, mesmo após a contabilização de fatores socioeconômicos.18 Esses resultados mostram que mesmo uma pequena queimadura pode levar a uma carga de doença crônica ao longo da vida para crianças.19

Desafios na avaliação da carga de queimaduras pediátricas

A maioria dos dados disponíveis para pacientes com lesões por queimaduras capturadas em repositórios (por exemplo, o Repositório Nacional de Queimaduras da American Burn Association e o de Queimaduras da Austrália e Nova Zelândia) contêm apenas pacientes internados no hospital com queimaduras.

Como as queimaduras das crianças são principalmente menores, muitas são tratadas exclusivamente ambulatorialmente e, portanto, podem ser negligenciadas pelas bases de dados tradicionais.20 Estes significam que o verdadeiro número de queimaduras pediátricas, juntamente com os custos associados à sua avaliação e gestão no sistema hospitalar e no atendimento ambulatorial, permanece mal documentado. Além disso, novos mecanismos de lesão por queimaduras estão constantemente emergindo, tornando a prevenção ativa de queimaduras e a defesa da segurança uma exigência contínua.

Campanhas de prevenção de queimadas direcionadas aos alarmes de fumaça domiciliar têm mostrado algum sucesso na redução de lesões relacionadas ao fogo.21 No entanto, a educação e as intervenções de segurança domiciliar só têm mostrado maior uso de práticas de  segurança, como ter uma temperatura segura da água quente (razão de probabilidades 1,41; IC 95% 1,07-1,86), um alarme de fumaça (1,81; 1.30-2.52), extintores de incêndio (1,40; 1,00-1,95), ou um plano de fuga de incêndio (2,01; 1,45-2,77), em vez de diminuir a incidência de queimaduras em crianças.22

A legislação sobre o aquecedor de água e a temperatura da água quente tem mostrado benefícios. Harvey et al.23 descobriram que após a introdução de uma legislação em Nova Gales do Sul que restringiu o fornecimento de água quente a 50°C em 1999, as taxas de internação por escaldas em adultos e crianças diminuiu 6% ao ano nos 9 anos seguintes, embora parte dessa redução possa ter refletido mudanças na gestão do cuidado das queimaduras. Da mesma forma, após a legislação de 2004, em Ontário, Canadá, observou-se   uma redução de 0,19 lesões por escaldura por 100.000 pessoas (todas as idades) entre 2002 e 2010, embora as taxas de internação hospitalar tenham permanecido inalteradas.24

Pode ser muito cedo para avaliar o impacto total desta legislação, com dados dos EUA indicando a necessidade de uma revisão regular das configurações de temperatura como parte da manutenção anual. Um ensaio randomizado, baseado na comunidade de visitas de segurança domiciliar em Baltimore (MD, EUA) em 2013, constatou que 24 anos após a introdução de padrões voluntários para ajustes de temperatura da água quente pelos fabricantes, 41% dos domicílios tinham água quente acima de 49°C, com maiores riscos em propriedades de aluguel com aquecedores de água a gás.25

Bebidas quentes têm sido a causa mais comum de queimaduras pediátricas há pelo menos 10 anos.26,27

 Apesar de muitas campanhas multimodais para educar o público sobre como evitar queimaduras de crianças, os esforços de prevenção não foram bem sucedidos na diminuição dessa estatística.22

Atendimento pré-hospitalar e comunitário

Tratamento inicial de primeiros socorros na comunidade

Como a maioria dos ferimentos de queimadura ocorrem em casa,28 membros da família (por exemplo, pais ou irmãos) são frequentemente os socorristas na cena de uma lesão de queimadura. Esses geralmente não têm formação médica e possuem pouco conhecimento sobre o manejo de queimaduras, então é importante que um profissional de saúde qualificado o oriente para melhor resultado dos pacientes.

Um estudo de 2018 com 2.522 crianças que tiveram queimaduras que se apresentaram em um centro de queimaduras pediátricas em Queensland, Austrália, revelou que, embora 92,6% dos pacientes tenham recebido tratamento de primeiros socorros, apenas 31.2% receberam o tratamento adequado. Idade mais jovem (0-2 anos) ou adolescência (15-16 anos), local rural ou remoto, e queimaduras por calor foram associadas a tratamento inadequado de primeiros socorros.29   

Em 2019, um estudo de intervenção por telefone direcionado a mães com mais de 18 anos para a prevenção de queimaduras por bebidas quentes em Queensland, Austrália, mostrou que, embora 94% tratassem uma queimadura com água fria corrente, apenas 10% sabiam da necessidade de fazê-lo por um mínimo de 20 minutos.30

Um estudo de 2005 com 462 profissionais de saúde em Perth (WA, Austrália) descobriu que menos de 20% foram capazes de responder corretamente a quatro cenários de primeiros socorros para queimaduras.31 De maneira similar, em uma enquete de 2020 de 1438 trabalhadores de saúde na Arabia Saudita, apenas 67% sabiam aplicar água fria como primeiros socorros para queimaduras e que 65% usariam remédios tradicionais (por exemplo, mel ou pasta de dente).32

Em parte, esses achados podem refletir informações imprecisas disponíveis na Internet,33 com uma aparente falta de consenso sobre o que constitui o tratamento de primeiros socorros ideal para queimaduras e quando procurar atendimento médico. As diretrizes atuais recomendam quatro etapas no manejo inicial de queimaduras:

1.  Remova: roupas, fraldas e joias que comprimem a área da queimadura e as afastem de uma grande fonte de ferimentos.

2. Resfriar: A área da ferida com água fria corrente apenas por 20 min; não use gelo; mantenha o paciente aquecido e pare de resfriá-lo com água corrente se ele estiver tremendo ou se suas extremidades ficarem cianóticas.

3. Cubra: A ferida com um curativo limpo e não grudado; não aplique cremes, óleos ou outras substâncias domésticas.

4. Procure: Atenção médica para todas as queimaduras com mais de 3 cm de diâmetro, ou para queimaduras na face, mãos, pés, virilha ou nádegas, ou se o paciente pode ter inalado fumaça ou fogo.

> Primeiros socorros adequados para melhorar os resultados dos pacientes 

Os primeiros socorros foram anteriormente entendidos principalmente como uma maneira de reduzir a dor, mas as evidências agora mostram que o resfriamento como primeiro passo também pode economizar tecido. Estudos pré-clínicos controlados descobriram que 20 minutos de exposição à água fria reduzem a profundidade do dano tecidual e melhoram a taxa de reepitelização da ferida.34–36

Dados clínicos mostraram vários resultados de melhora em pacientes associados a 20 minutos de água fria da torneira aplicada dentro de 3 horas após a queimadura. Esses resultados incluem reepitelização mais rápida da ferida,37 menos cirurgias de enxerto de pele e área de enxerto reduzida,37–40 menor tempo de internação28,39 e uma diminuição significativa das internações em unidades de terapia intensiva.39

Um estudo clínico prospectivo demonstrou que o resfriamento de uma queimadura está associado à diminuição do dano tecidual in vivo em comparação com a pele afetada não tratada.41

As diretrizes internacionais de primeiros socorros em queimaduras são consistentes principalmente com essas quatro etapas principais;42–44 no entanto, há alguma variabilidade nas orientações sobre segurança, métodos de resfriamento, duração ideal e critérios de encaminhamento.45 É provável que essa diferença nas mensagens entre as principais organizações de segurança em queimaduras devido à falta de conscientização pública e uso de primeiros socorros.29

Embora o tratamento de primeiros socorros deva prevenir a morte celular rápida em altas temperaturas, outros mecanismos teóricos de recuperação tecidual envolvem a preservação da microvasculatura, diminuição do edema e redução de mediadores inflamatórios.46

Gestão inicial por profissionais de saúde pré-hospitalares 

Os paramédicos têm um papel crucial no atendimento pré-hospitalar de queimaduras por meio do manejo adequado do alívio da dor e do início ou suplementação do tratamento de primeiros socorros e pelo monitoramento dos sinais vitais do paciente (incluindo temperatura) durante o transporte.47

A administração imediata de suporte de vida antes do transporte para um centro de trauma ou queimado provavelmente é benéfico para garantir a sobrevivência de queimaduras com risco de vida que exigem ressuscitação com fluidos e controle das vias aéreas.48

No entanto, como a maioria das queimaduras em crianças não é fatal, o tempo adicional no local para estabilizar o paciente pode ajudar a garantir que a duração apropriada do resfriamento dos primeiros socorros seja aplicada o mais próximo possível do momento da lesão por queimadura, além de monitorar a temperatura do paciente e administração de analgesia.49

Curativos temporários que incluem um pano limpo e leve ou filme plástico e estratégias de aquecimento passivo, como cobertores espaciais (cobertos com filme plástico leve com um agente refletivo metálico) são essenciais em veículos de emergência para permitir o atendimento adequado de pacientes pediátricos com queimaduras.50

Gestão de queimaduras agudas no nível hospitalar

O profissional de saúde que faz parte do tratamento inicial (por exemplo, paramédico, equipe do pronto-socorro ou clínico geral) deve discutir todas as queimaduras na infância com um hospital ou centro de queimados para estabelecer, se necessário, um encaminhamento  para uma unidade especializada ou o paciente pode ser tratado localmente sob orientação, para  garantir que receba o mesmo padrão de atendimento.

A hospitalização geralmente é justificada se a queimadura envolver mais de 5% do ASCT, se houver suspeita de que a queimadura envolva as vias aéreas, se o paciente precisar de reposição volêmica ou analgesia, ou se a necessidade de cirurgia (por exemplo, escarotomia). Além disso, fatores familiares, sociais e a distância entre a casa do paciente e o centro de queimados podem exigir que o paciente seja internado, mesmo que a queimadura possa ser tratada em ambulatório.51

As queimaduras são dolorosas e angustiantes: o tratamento eficaz requer uma abordagem multidisciplinar para controlar a dor subjacente, a dor do procedimento e qualquer dor perioperatória durante o tratamento da queimadura.52

O controle da dor e do estresse é vital desde o início do tratamento, uma vez que a liberação prolongada de mediadores da dor tem um efeito prejudicial nos processos normais de cicatrização de feridas,53 afetando inclusive a reepitelização.54

Na maioria das circunstâncias, a analgesia opióide é administrada por paramédicos ou no pronto-socorro; este tratamento é necessário até que o leito da ferida seja adequadamente limpo para remover todos os detritos, bolhas e pele solta do local da ferida.

A anestesia geral pode ser necessária para limpar queimaduras mais dolorosas nas mãos e pés, superfícies de queimaduras maiores, queimaduras mais profundas, queimaduras envolvendo vários locais anatômicos e circunstâncias em que a criança teve seu curativo inicial aplicado em um hospital que não é de queimaduras, e onde ele pode ter recebido analgesia inadequada.55

Durante os procedimentos de curativos semanais ou duas vezes por semana, a analgesia pode envolver uma combinação de paracetamol, anti-inflamatórios não esteroides, benzodiazepínicos, opioides, cetamina e óxido nitroso,56 suplementado por terapias não farmacológicas.

Pais e cuidadores também experimentam angústia e ansiedade durante o episódio de queimadura de uma criança,58 e seus próprios sintomas de estresse pós-traumático e culpa podem influenciar o sofrimento da criança.59 Uma boa comunicação entre a equipe médica e o pai/mãe ou cuidador pode ajudar a gerenciar as expectativas sobre o procedimento, permitindo que os pais apoiem e distraiam seu filho durante as trocas de curativos.60

A intervenção cirúrgica aguda desempenha um papel vital no atendimento pediátrico de queimaduras, sendo essencial aliar a avaliação do paciente à experiência da equipe clínica e de suas instalações. Embora a maioria das queimaduras pediátricas seja de espessura parcial e cicatrize com tratamento conservador, quanto maior o tempo de cicatrização, maior o risco de infecção e cicatrização a longo prazo.61

O diagnóstico preciso da profundidade da queimadura continua sendo um desafio, e a previsão da trajetória de cicatrização é fundamental na tomada de decisão clínica, especialmente em relação à necessidade de intervenção cirúrgica.62

Até o momento, os dopplers a laser têm sido o dispositivo mais amplamente usado com benefícios na previsão de resultados de queimaduras em crianças.63 Essa tecnologia permite que a intervenção cirúrgica apropriada seja acelerada e facilita a avaliação objetiva de queimaduras para estudos comparativos de novas intervenções, como novos curativos, métodos de desbridamento ou técnicas de fechamento de feridas.

As melhorias na tecnologia permitiram cada vez mais que os especialistas em queimaduras economizassem tecido, reduzissem o número de locais doadores e reduzissem o tempo de cicatrização, melhorando assim o resultado geral. Curativos avançados para feridas, como curativos de prata nanocristalina, reduzem a inflamação, infecção e escarificação subsequente,64 e curativos de pressão negativa controlam o edema, reduzem a carga bacteriana e permitem a recuperação do tecido, reduzindo o tempo de cicatrização e as lesões.

O uso cirúrgico de scaffolds dérmicos, como o NovoSorb BTM à base de polímeros sintéticos e biodegradáveis ​​(PolyNovo, Carlsbad, CA, EUA), têm permitido o rápido fechamento inicial da ferida em queimaduras de espessura total, com uma membrana de vedação temporária que permite posterior ferida secundária fechamento;66 e a terapia com células autólogas colhidas no ponto de atendimento facilitou a intervenção com áreas doadoras mínimas.62,67

A necessidade de excisão tangencial de feridas convencionais foi reduzida com o uso de uma variedade de ferramentas, incluindo hidrodissecção (Versajet; Smith and Nephew, Watford, Reino Unido) e desbridamento de feridas de queimadura com soluções como Nexobrid (MediWound, Yavne, Israel), uma mistura de enzimas proteolíticas com bromelina, mostrando resultados promissores.68

Gerenciamento das cicatrizes e cuidados de longo prazo

Cicatrizes em crianças em crescimento

As cicatrizes de queimaduras podem ter um efeito significativo nas crianças, que continuam a crescer após a lesão. Idade mais jovem, infecção bacteriana e tensão da pele são fatores de risco para o desenvolvimento de cicatrizes hipertróficas.69 Queimaduras maiores, feridas que levam mais de 14 dias para re-epitetilizar, e múltiplos procedimentos cirúrgicos também são fatores de risco para o desenvolvimento desses tipos de cicatrizes.70 As cicatrizes que estão localizadas nas articulações podem criar contraturas,71 limitando a amplitude de movimento e afetando negativamente a mobilidade.

Técnicas cirúrgicas reconstrutivas são usadas para liberar a tensão relacionada à cicatriz, às vezes exigindo vários procedimentos até que a criança termine de crescer ou atinja a idade adulta. A prevenção ou tratamento de cicatrizes começa durante o estágio inicial de cuidados agudos e continua por muito tempo após o fechamento da ferida.

Pacientes pediátricos geralmente retornam ao hospital em regime ambulatorial para avaliação e tratamento de cicatrizes muitos anos após uma lesão por queimadura. A maioria dos hospitais pediátricos recebe apenas pacientes com menos de 16 anos, exigindo encaminhamento do paciente para uma unidade de queimados de adultos para facilitar o gerenciamento contínuo, embora os processos e caminhos para essa transição e cuidados contínuos sejam frequentemente complexos.

Avaliação objetiva e precisa da cicatriz da queimadura

A medição objetiva e precisa dos restos da cicatriz é essencial para avaliar o manejo da cicatriz em pacientes individuais e comparar os resultados entre os diferentes tratamentos. Apesar do progressivo desenvolvimento do cuidado de queimados como especialidade desde a década de 1950, a avaliação das cicatrizes de queimaduras permanece controversa. Várias escalas de avaliação foram desenvolvidas, mas elas variam de acordo com as populações de pacientes analisadas, as propriedades da cicatriz examinadas e os pontos de tempo avaliados (único vs. longitudinal).72

A Vancouver Scar Scale (VSS)73 continua sendo o sistema de pontuação mais estabelecido, mas tem limitações bem reconhecidas relacionadas a itens subjetivos dentro da pontuação, resultando em baixa confiabilidade entre observadores.74,75 Essas limitações levaram ao desenvolvimento de múltiplas VSS modificadas e novas escalas para melhorar a objetividade e incorporar os sintomas do paciente e o impacto psicológico da cicatriz da queimadura.

Exemplos dessas escalas incluem o VSS modificado ligado ao ASCT (VSSm-ASCT),76 o Patient and Observer Scar Assessment Scale (POSAS; seis itens, classificados tanto pelo paciente/cuidador quanto por um observador, incluem prurido e dor),77,78 e o Brisbane Burn Scar Impact Profile (BBSIP; 58 itens avaliando o impacto físico e a morbidade psicossocial do tratamento de cicatrizes e cicatrizes na criança e na família, preenchido pelo paciente ou cuidador).79,80

A nova tecnologia melhorou a capacidade de avaliar objetivamente cicatrizes de queimaduras,81 incluindo altura e espessura da cicatriz (ultrassom), área de superfície da cicatriz (fotografia 3D), flexibilidade da cicatriz em resposta à força padronizada (por exemplo, cutômetro),82 cor e pigmentação (por exemplo, mexameter), textura e teor de umidade e sensibilidade.

Não existe um sistema de pontuação único que incorpore todos esses elementos, e vários requerem o uso de diferentes dispositivos para avaliar apenas um aspecto da cicatriz. Além disso, algumas ferramentas não podem ser facilmente usadas em crianças mais novas, exigindo investimento em termos de custos de equipamentos, tempo da equipe e treinamento. Um dispositivo, o DermaLab Combo (Tecnologia Cortex, Hadsund, Dinamarca), incorpora um espectrofotômetro para avaliar eritema e pigmentação e uma sonda de ultrassom para espessura e sucção para elasticidade.83

Embora vários estudos tenham validado essas ferramentas de avaliação de cicatrizes, outros não demonstraram uma boa correlação entre os dois sistemas de pontuação clínica mais utilizados, VSS e POSAS.84 Em última análise, um escore confiável e objetivo que pode ser estabelecido rapidamente a baixo custo, tanto em termos de tempo e tecnologia, permanece indescritível, mas crucial para facilitar novos avanços no gerenciamento de cicatrizes de queimaduras.

Cuidados com cicatrizes após alta

O amadurecimento de uma cicatriz continua por vários meses após a alta, e a atividade de pico da cicatriz geralmente ocorre de 3 a 6 meses após uma queimadura.

Portanto, a avaliação da cicatriz aos 3 meses pós-lesão pelos escores POSAS em adultos e crianças tem se mostrado preditiva de resultados a longo prazo.78 Durante esse período, várias estratégias podem potencialmente melhorar o processo de remodelação e o resultado final da cicatriz.

Dado o amplo impacto das cicatrizes nos resultados psicossociais e físicos, a necessidade de minimizar as cicatrizes é clara. Intervenções comuns incluem roupas de pressão, meios de contato de silicone e massagem cicatricial.

A evidência para a eficácia dessas intervenções é mista, com muitos estudos sugerindo benefício limitado ou nenhum benefício dessas intervenções no resultado da cicatriz ou qualidade de vida,85 e nenhuma diferença entre o benefício fornecido por qualquer intervenção individual ou a combinação de pressão e silicone.86 Dado o impacto e os custos desses tratamentos, é necessária uma consideração adicional para o uso dessas intervenções, particularmente roupas de pressão.87

O prurido pós-queimadura ocorre até certo ponto em quase todos os pacientes; pode começar dentro de dias de lesão e persistir por muitos anos.

A intensidade do prurido diminui com o tempo, mas mesmo pela descarga pode causar dificuldades para dormir em crianças.88 Parece ter fatores cutâneos e pruriginosos locais, juntamente com elementos neuropáticos, que estão relacionados ao dano às fibras periféricas da dor no momento da queimadura e sensibilização central.

Fatores locais podem responder a corticosteroides tópicos e anti-histamínicos orais (antagonistas H1), mas os elementos neuropáticos podem ser mais importantes, correlacionando-se com uma maior resposta relatada aos gabapentinoides.89,90

Embora os fatores locais pareçam menos cruciais, o tratamento com hidratantes à base de parafina, como Sorbolene (óleos minerais e água) ou E45 (parafina macia branca, parafina líquida e lanolina; Reckitt Benckiser, Sydney, NSW, Austrália), também pode ajudar a reduzir o prurido e geralmente são recomendados como parte dos cuidados de rotina após a cicatrização completa de queimaduras, embora com pouca evidência científica.91,92

Assim como os hidratantes têm sido recomendados com base na perda de glândulas sudoríparas e sebáceas após uma queimadura, o uso de protetor solar também tem sido recomendado em uma cicatriz de queimadura devido à perda de melanócitos no tecido cicatricial.

Novamente, as evidências para apoiar essa recomendação são escassas, mas alguns dados sugerem que crianças com queimaduras graves requerem suplementação de vitamina D, independentemente da exposição ao sol e uso de protetor solar.93

Intervenções mais invasivas, incluindo o uso de microagulhamento ou laser fracionado de CO₂ ablativo, são cada vez mais utilizadas no tratamento de cicatrizes de queimaduras pediátricas.

A maior parte da literatura publicada nesta área é para cicatrizes pós-queimaduras em adultos,94,95 e permanece uma limitação substancial na má compreensão dos mecanismos envolvidos na remodelação da cicatriz ou reorganização da matriz extracelular. Essa falta de pesquisa leva à disparidade nos protocolos de tratamento (configurações de energia, profundidade, pontos de tempo pós-queimadura para aplicação, duração da aplicação e combinação com produtos tópicos) e efeitos potencialmente minimizados ou até negativos pelo uso inadequado ou excessivo.

Em crianças, essas terapias geralmente são necessárias regularmente ao longo de vários meses ou anos e requerem anestesia geral. No entanto, os cuidadores continuam surpreendentemente entusiasmados com a adoção dessas intervenções devido ao desapontamento com os resultados atuais da cicatriz.96 Além disso, há muito poucos estudos usando técnicas objetivas de avaliação da cicatriz para comparar os efeitos do tratamento, em parte devido às medidas limitadas disponíveis ou poucos controles apropriados. Portanto, mais pesquisas sobre mecanismos e protocolos de tratamento ideais permanecem essenciais para o amplo uso benéfico dessas terapias.

Várias abordagens cirúrgicas na reconstrução da cicatriz podem ser exploradas para abordar as propriedades da cicatriz. Uma contratura pode exigir liberação cirúrgica com ou sem inserção de novo tecido na área.

A pigmentação da pele também pode ser anormal (hiperpigmentada ou hipopigmentada). Cirurgicamente, após dermoabrasão, microagulhamento ou terapia a laser, uma suspensão de células autólogas pode ser semeada na área com Recell Skin Spray (Avita Medical, Valencia, LA, EUA), onde é realizada uma biópsia da área proximal livre de cicatriz pode ser usada para repigmentar áreas com cicatrizes.97

Lasers de corante pulsado têm sido usados ​​para cicatrizes de queimaduras, embora haja poucas evidências para apoiar seu uso para diminuir a vascularização da cicatriz, em comparação com anormalidades vasculares, como malformações capilares (por exemplo, mancha vinho do porto).98,99 Há também maquiagem cosmética de camuflagem opções para os pacientes combinarem a cicatriz com a cor do pé ao redor, o que pode ter um impacto positivo na qualidade de vida e na socialização, principalmente para adolescentes.100

Impacto psicossocial após a alta

As lesões por queimaduras são traumáticas e até 30% das crianças expostas a traumas na primeira infância podem desenvolver sintomas de estresse traumático médico pediátrico relacionado à própria lesão ou aos procedimentos médicos ou terapêuticos resultantes.101

A prevalência de distúrbios emocionais e comportamentais em crianças menores de 6 anos com queimaduras foi relatada como 35% em um mês pós-queimadura e 27% em 6 meses, diagnosticadas com distúrbios psicológicos, incluindo transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), transtorno desafiador opositivo e transtorno de ansiedade de separação.102

Se não tratadas, as reações traumáticas podem seguir uma trajetória crônica e debilitante em aproximadamente 10% das crianças102,103 com sérias consequências para o desenvolvimento biológico e psicossocial e funcionamento familiar.104

Crianças menores de 5 anos com queimaduras são especialmente vulneráveis, pois geralmente são pré-verbais e difíceis de testar com medidas psicológicas tradicionais. A recuperação de uma criança também pode ser afetada pelos comportamentos de angústia e enfrentamento de seus cuidadores.101

De um modo mais geral, a cicatrização tem efeitos negativos na qualidade de vida. Existem medidas específicas que avaliam a experiência de viver com cicatrizes, incluindo o BBSIP,80 o Burn-Specific Health Scale-Summary (BSHS-B),105 e o Burn Outcomes Questionnaire.106

Além disso, a Appearance Satisfaction Scale107 foi elaborada com algumas questões da BSHS-B para medir a satisfação com a aparência e o impacto social e comportamental da cicatriz. Essas medidas detalhadas de qualidade de vida oferecem uma oportunidade de aprender sobre os problemas que o indivíduo está enfrentando durante sua recuperação e ajudam a identificar pacientes que precisam de intervenção.

A aparência da cicatriz é sempre importante, principalmente para adolescentes (10 a 19 anos)108, pois esta é a idade de maior preocupação com a imagem corporal. Essas preocupações podem contribuir para o aumento das internações hospitalares por ansiedade e transtornos de humor observados em crianças que sofreram queimaduras entre as idades de 5 e 15 anos.14

Embora o aparecimento de uma cicatriz seja fundamental para a integração social e a qualidade de vida, outras consequências, incluindo coceira (que pode afetar o sono e, portanto, a saúde mental), desconforto e termorregulação afetam a vida diária das crianças após uma queimadura e suas interações sociais e qualidade de vida.

Muitas intervenções psicossociais são usadas em vários estágios do tratamento de queimaduras pediátricas: técnicas de distração em terapia intensiva (com ou sem realidade virtual) demonstraram reduzir efetivamente a dor e a ansiedade, a terapia cognitivo-comportamental de longo prazo pode melhorar as relações sociais e as habilidades de enfrentamento e acampamentos de queimados (atividades físicas e sociais organizadas para grupos de pessoas com queimaduras) podem diminuir o estigma e aumentar a confiança. No entanto, as evidências são principalmente anedóticas e essas intervenções não foram submetidas a avaliação padronizada para recuperação psicossocial após queimaduras.109

Impactos fisiológicos após alta

As lesões por queimadura continuam a afetar a fisiologia por vários anos.

Estudos de crianças com queimaduras graves (50% ASCT) mostram evidências de interrupção metabólica sustentada, com gasto energético de repouso elevado até 2 anos após a queimadura.110

Outros impactos negativos para a saúde incluíram diminuição do conteúdo mineral ósseo e massa corporal magra por até 3 anos após a queimadura, juntamente com aumento do débito cardíaco, índice cardíaco e frequência cardíaca por 2 a 3 anos após a queimadura.

Resultados de estudos em animais sugeriram que queimaduras não graves de 5 a 8% de ASCT em camundongos também induzem hipermetabolismo (>10% de aumento na taxa metabólica basal)111 e estão associadas à diminuição do volume ósseo112 nos primeiros 30 dias após a queimadura.

Pequenos estudos de coorte de queimaduras não graves (4-4,5% ASCT) relataram aumento do diâmetro sistólico final do ventrículo esquerdo 3 meses após a queimadura em adultos113 e diminuição da resposta imune em crianças até 3 anos após a lesão por queimadura.

Os dados clínicos disponíveis examinando hipermetabolismo e disfunção orgânica após queimadura foram relatados apenas para pacientes pediátricos com queimaduras graves (>30-40% ASCT),115 portanto não está claro quão extensos são esses efeitos para queimaduras não graves ou se os medicamentos que modulam essa resposta, como o propranolol,116 beneficiaria essa população.

A natureza permanente das cicatrizes é particularmente problemática para as crianças. Compreender as vias moleculares e celulares envolvidas no desenvolvimento e manutenção a longo prazo do tecido cicatricial pode fornecer oportunidades para intervenções destinadas a prevenir ou diminuir a cicatrização após a queimadura.117 Embora os fibroblastos sejam as principais células envolvidas na manutenção do tecido cicatricial, a matriz extracelular, os mecanismos que controlam a produção de matriz extracelular são complexos.

Os fibroblastos respondem a sinais físicos, como rigidez da matriz, e a sinais biológicos (por exemplo, TGFβ); a integração desses regula a renovação do colágeno e da matriz na pele.118 Também está ficando claro que os fibroblastos dérmicos não são um único tipo de célula; existem vários subconjuntos com papéis distintos no processo de formação da cicatriz.119

A importância da rigidez e o papel de subconjuntos específicos de fibroblastos foi demonstrado em um modelo de camundongo transgênico, onde estas células com expressão de Engrailed 1 foram inibidas em feridas de estresse, resultando em cicatrização de feridas sem cicatriz.120 Apesar da importância da renovação do colágeno no desenvolvimento e manutenção do tecido cicatricial, relativamente pouco se sabe sobre esse processo na pele, e menos ainda sobre as cicatrizes.

Algumas evidências sugeriram que o colágeno da pele tem uma meia-vida de até 15 anos,121 enquanto outros trabalhos sugerem que o colágeno é sintetizado a uma taxa de 1,8% por dia.122

Potencialmente, o colágeno poderia existir no corpo como um depósito de massa e um conjunto menor de renovação rápida para manter a homeostase no tecido sob estresse e tensão constantes.123 A obtenção de medições precisas de turnover in vivo em humanos continua sendo um desafio, mas é importante para o futuro tratamento de cicatrizes em crianças em crescimento.

Lacunas e desafios da pesquisa

Muitos desafios permanecem no manejo de queimaduras pediátricas, particularmente no atendimento pré-hospitalar e pós-alta.

Diretrizes internacionais claras para primeiros socorros e tratamento pré-hospitalar de queimaduras são necessárias, inclusive para comunidades rurais ou remotas e situações em que a descarga com água corrente não é uma opção.

Ferramentas para avaliar a gravidade física e o impacto psicossocial das cicatrizes que sejam apropriadas, precisas e objetivas também são necessárias para direcionar o desenvolvimento de terapias para prevenir ou reduzir novas cicatrizes, com consenso global sobre as medidas de resultados de queimaduras a serem usadas, para que os resultados dos testes são comparáveis.

Como a queimadura é uma subespecialidade relativamente pequena, estudos multicêntricos são necessários para obter resultados com poder suficiente para apoiar o cuidado baseado em evidências.

Apesar das crescentes evidências do impacto a longo prazo na saúde de queimaduras pediátricas não graves, há pouco sobre os mecanismos que sustentam os efeitos na saúde ou o potencial de intervenção clínica.

É necessária uma compreensão mais holística dos fatores psicossociais, mentais, biológicos e genéticos associados ao aumento do risco de resultados ruins para pacientes pediátricos com queimaduras.

Estudos longitudinais maiores incorporando medidas clínicas, psicossociais e fisiológicas dessa população de pacientes fornecerão uma oportunidade para entender melhor e tratar queimaduras não graves de forma holística, apoiar o atendimento e os resultados do paciente e reengajar crianças com queimaduras em um caminho de vida saudável.

Comentário

As queimaduras pediátricas são comuns, especialmente em crianças pequenas, e podem levar a problemas físicos e psicossociais a longo prazo.

Tratamento adequado de primeiros socorros, avaliação inicial correta da gravidade da queimadura e encaminhamento para um centro de queimados conforme necessário são etapas essenciais para minimizar os danos secundários à lesão.

A prevenção ou tratamento das cicatrizes e o acompanhamento do paciente após a alta também são essenciais. Além dessas medidas, é essencial realizar intervenções em diferentes cenários para prevenir essas lesões não intencionais e melhorar o atendimento de pacientes com maior carga de queimaduras.


Resumo e comentário objetivo: Dra. Maria Eugenia Noguerol