Disfunção metabólica

Doença associada à disfunção metabólica do fígado e suas implicações para o risco cardiovascular

Relação entre doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica e doença hepática gordurosa não alcoólica

Autor/a: Zhou, XD., Cai, J., Targher, G. et al.

Fuente: Cardiovasc Diabetol 21, 270 (2022). https://doi.org/10.1186/s12933-022-01697-0 Metabolic dysfunction-associated fatty liver disease and implications for cardiovascular risk and disease prevention

Introdução

A doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica (MAFLD, sua sigla em inglês) foi proposta como um termo mais apropriado a doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA). A segunda é definida como um grupo de condições heterogêneas em que há o acúmulo da gordura no fígado na ausência de causas secundárias de esteatose hepática, como consumo excessivo de álcool, hepatite viral e outras causas conhecida. Esses critérios diagnósticos "negativos" (por exclusão) não são apropriados, significando que a DHGNA só está presente quando todas as outras causas de fígado gorduroso forem excluídas.

A MAFLD é definida como uma condição caracterizada pelo acúmulo de gordura no fígado na presença de pelo menos uma das seguintes três condições metabólicas: sobrepeso/obesidade, diabetes mellitus tipo 2 (DMT2), ou pelo menos duas das sete anormalidades de risco metabólico em sujeitos que não têm diabetes tipo 2 e são magros de acordo com critérios de índice de massa corporal (IMC) específicos para cada grupo étnico. Os critérios diagnósticos "positivos" para MAFLD baseiam-se na coexistência de esteatose hepática e disfunção metabólica.

Há poucos estudos que abordaram a relação da DHGNA ou MAFLD e os seus riscos cardiovasculares (DCV). Por isso, Zhou e colaboradores (2022) realizaram uma revisão acerca dessa conexão.

O risco estimado de DCV é semelhante ao usar as definições de NAFLD ou MAFLD?

Porque a sobreposição entre as definições de DHGNA e MAFLD é em torno de 70-90%, espera-se tenham um risco de DCV semelhantes.

No entanto, evidências emergentes sugeriram um maior risco de eventos de DCV em pacientes com doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica do que naqueles com DHGNA. Zhang et al., (2021) relataram que pessoas com MAFLD tinham um risco cardiovascular em 10 anos significativamente maior do que aqueles com DHGNA. Em uma coorte de 6.232 participantes acompanhados por uma mediana de 4,3 anos, Liu et al., (2021) relataram que MAFLD estava associada a um maior risco de desenvolver aterosclerose subclínica. Além disso, uma metanálise associou a mesma com um maior risco de mortalidade geral, mortalidade por DCV, eventos de DCV não fatais e AVC.

Em um estudo de coorte de aproximadamente 6,8 milhões de indivíduos japoneses, Yoneda et al., (2021) relataram que o risco de eventos de DCV era quase o mesmo (HR ajustado 1,02, IC 95% 0,92-1,14) nos grupos de DGHNA e não- DGHNA após ajuste para fatores de risco cardiometabólicos. Em contraste, após ajuste para os mesmos fatores, o risco foi maior no grupo MAFLD em comparação com o grupo não-MAFLD.

Embora a recente declaração científica da AHA tenha identificado a DHGNA como um fator de risco independente para DCV, a questão de se a MAFLD é apenas um espectador ou um mediador ativo na patogênese permanece em aberto. Com base nas evidências disponíveis, os fatores de risco cardiometabólicos compartilhados desempenham um papel importante, mas provavelmente não explicam inteiramente a relação entre o MAFLD e o risco de eventos de DCV. Além desses, o(s) mecanismo(s) preciso(s) subjacente(s) à associação entre a doença metabólica e risco cardiovascular não está(ão) claro(s), mas alguns potenciais (como, por exemplo, ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, alguns polimorfismos genéticos relacionados à NAFLD e disbiose intestinal) também podem desempenhar um papel tanto no MAFLD quanto na DCV, mas mais pesquisas são necessárias.

Coletivamente, portanto, evidências crescentes indicaram que MAFLD pode aumentar o risco de desenvolver resultados adversos de DCV.

Já que a definição de MAFLD captura melhor a disfunção metabólica subjacente, talvez não seja surpreendente que essa possa aumentar o risco de DCV mais fortemente do que a definição de DHGNA.

Por que a MAFLD está associada a risco aumentado de DCV?

Existem pelo menos duas explicações possíveis. Primeiramente, a definição da MAFLD tem como requisito obrigatório a presença de sobrepeso/obesidade, DMT2 ou outras características da síndrome metabólica, todas associadas a um aumento do risco de DCV.

Em segundo lugar, o impacto da MAFLD no risco de DCV também pode ser afetado por outras doenças hepáticas coexistentes, como hepatite viral ou consumo moderado de álcool. Enquanto é necessário sempre excluir essas para estabelecer um diagnóstico de DHGNA, isso não é necessário para um diagnóstico da MAFLD. De fato, alguns estudos mostraram que pacientes com MAFLD e hepatite viral concomitante ou consumo moderado de álcool têm um maior risco de DCV calculado em 10 anos em comparação com aqueles com apenas a doença metabólica.

Ademais, a própria MAFLD pode aumentar o risco de DCV possivelmente por meio de múltiplos mecanismos fisiopatológicos associados à disfunção metabólica; estes incluem aumento do estresse oxidativo, resistência à insulina sistêmica/hepática, inflamação de baixo grau e disfunção endotelial. O aumento das espécies reativas de oxigênio (ROS) nesse grupo leva à inflamação hepática e fibrose. Também resulta na oxidação do colesterol de lipoproteínas de baixa densidade (LDL), o que pode promover a transformação de macrófagos em células espumosas, um passo chave na formação de lesões ateroscleróticas e na progressão da aterosclerose.

A resistência à insulina é considerada uma das mudanças fisiopatológicas centrais no MAFLD. Promove a lipogênese hepática e pode afetar a homeostase microvascular e macrovascular de várias maneiras para promover a aterosclerose. Além disso, estudos anteriores confirmaram que a hiperglicemia crônica danifica as células endoteliais vasculares, estimula a proliferação de células musculares lisas, melhora a atividade plaquetária e induz a superprodução de ROS, promovendo assim a aterogênese acelerada. A inflamação de baixo grau também agrava a disfunção endotelial, altera o tônus vascular e promove a formação de placas vasculares. Todos esses mecanismos promovem o desenvolvimento e a progressão de DCV, incluindo inflamação vascular, deposição lipídica, remodelação vascular, lesão endotelial e hipercoagulabilidade.

O rastreamento de rotina é necessário o para MAFLD na avaliação do risco de DCV?

Com base nas evidências atuais, permanece incerto se o diagnóstico da MAFLD melhora a previsão do risco de DCV. Atualmente, em populações de pacientes de alto risco com obesidade, DMT2 ou síndrome metabólica, o rastreamento para a doença metabólica tem sido recomendado por muitas diretrizes científicas. No entanto, algumas sociedades cardiovasculares não a recomendaram. Antes que seja recomendada, é necessário demonstrar que o rastreamento de rotina pode melhorar tanto os resultados relacionados ao fígado quanto os cardiovasculares de maneira eficaz em termos de custo.

Na doença hepática gordurosa, muitas vezes é negligenciado que a gravidade da fibrose hepática está fortemente associada a um aumento do risco de eventos fatais e não fatais de DCV. Testes não invasivos para diagnostica-la podem reduzir o número de biópsias desnecessárias e identificar pacientes com maior risco de DCV.

Qual é o efeito das intervenções de tratamento para MAFLD no risco de doença cardiovascular (DCV)?
  • Intervenções que beneficiam tanto a DCV quanto a MAFLD

A intervenção no estilo de vida continua a desempenhar um papel fundamental na prevenção primária e secundária de DCV, como também recomendado em várias diretrizes para o manejo de MAFLD. A adoção de uma dieta rica em vegetais, frutas, legumes, nozes, grãos integrais e peixes é recomendada em ambas as condições. 

A perda de peso é um componente essencial do tratamento. O emagrecimento de 5% a 10% tem se mostrado um objetivo alcançável e resulta em melhorias significativas nas características histológicas hepáticas (esteatose, inflamação e fibrose) e redução do risco de DCV. Em relação à atividade física, pelo menos 150 ou 75 minutos por semana de atividade física aeróbica de intensidade moderada ou vigorosa, respectivamente, podem melhorar a esteatose hepática e reduzir o risco de DCV.

O DM2 frequentemente está presente em MAFLD e a miocardiopatia diabética é um fator de risco para DCV. Dados sugeriram que alguns agentes redutores de glicose mais novos podem não apenas melhorar as características histológicas da DHGNA, mas também reduzir significativamente os desfechos de DCV, pois esses agentes induzem a perda de peso e melhoram o controle glicêmico. Os agonistas do receptor de peptídeo semelhante ao glucagon 1 (GLP-1RAs) e os inibidores do cotransportador de sódio-glicose 2 (SGLT-2i) são duas classes que são altamente eficazes.

  • Terapias com benefício na MAFLD, mas com preocupações de segurança cardiovascular

A carboxilase de acetil-CoA (ACC) é uma enzima chave na síntese de ácidos graxos que tem sido explorada como um alvo terapêutico para esteato-hepatite metabólica. Os seus inibidores podem melhorar a esteatose hepática, inflamação e fibrose. Infelizmente, em um ensaio clínico randomizado, esses fármacos reduziram o conteúdo de gordura no fígado, mas aumentaram os níveis de triglicerídeos plasmáticos, levantando preocupações sobre sua segurança cardiovascular.

Saroglitazar, um agonista duplo do receptor ativado por proliferadores de peroxissoma (PPAR) α/γ, foi o primeiro medicamento a ser aprovado para esteato-hepatite não alcoólica não cirrótica. Um ensaio clínico randomizado, duplo-cego e controlado por placebo demonstrou que a dose alta do fármaco (4 mg diários) por 16 semanas reduziu o conteúdo de gordura no fígado e melhorou a resistência à insulina, os níveis de triglicerídeos séricos e as transaminases em pacientes obesos com MAFLD ou DHGNA.

Lanifbranor é um agonista pan-PPAR que ativa os receptores PPAR α, γ e δ. No ensaio clínico NATIVE fase 2B controlado por placebo, o escore histológico SAF-A (atividade de esteatose hepática, atividade e fibrose) foi reduzido em pacientes obesos com esteato-hepatite não alcoólica confirmada por biópsia. Além disso, múltiplos desfechos secundários foram alcançados com resolução satisfatória da doença sem piora da fibrose. No entanto, há poucas evidências do seu impacto no risco de DCV.

A vitamina E melhora efetivamente a histologia hepática em pacientes adultos com DHGNA comprovada por biópsia. A combinação de espironolactona em baixa dose com vitamina E também reduziu o escore de gordura hepática. No entanto, estudos avaliando o benefício histológico da vitamina geralmente foram negativos ou produziram resultados inconsistentes.

  • Terapias com benefícios em DCV, mas efeitos desconhecidos na MAFLD

As estatinas são o tratamento de primeira linha para prevenir DCV aterosclerótica em pacientes com hipercolesterolemia.  Os fármacos reduziram o risco de doença cardiovascular em pacientes com MAFLD com dislipidemia, mesmo sem nenhum efeito benéfico na histologia hepática. Sabe-se que esses fármacos são seguras na DHGNA e o seu uso não está associado a níveis anormais de enzimas hepáticas séricas, mesmo em pacientes com esteatose hepática. Uma preocupação inesperada é que esse tratamento pode ser subótimo para indivíduos com MAFLD, no entanto, mais pesquisas são necessárias para testar isso mais a fundo.

Inibidores da proproteína convertase subtilisina/kexina tipo 9 (PCSK9) representam uma abordagem farmacológica alternativa para reduzir as concentrações plasmáticas de LDL-C. Embora alguns estudos tenham relatado um possível efeito benéfico na patologia hepática, é prematuro recomendar este agente para tratamento específico da MAFLD.

O uso diário de aspirina tem sido associado a menos características histológicas graves da MAFLD e a um menor risco de progressão para fibrose avançada em um estudo observacional recente. Inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA) e bloqueadores dos receptores de angiotensina II (ARBs) também são considerados exercer um efeito anti-fibrótico moderado no fígado em estudos experimentais e clínicos.