Efeitos adversos dos tratamentos

Transtornos capilares em pacientes com câncer

O distúrbio mais comum é a alopecia, no entanto, outras alterações podem ser observadas

Autor/a: Freites-Martinez A, Shapiro J, Goldfarb S, Nangia J, Jimenez JJ, Paus R, Lacouture ME.

Fuente: J Am Acad Dermatol. 2019 May; 80(5): 11791196. doi: 10.1016/j.jaad.2018.03.055 CME Part 1: Hair disorders in cancer patients

Introdução

O câncer é um importante problema de saúde pública em todo o mundo. Nele, o distúrbio capilar mais comumente encontrado é a alopecia induzida pela quimioterapia citotóxica (CIA). No entanto, várias outras terapias também podem estar relacionadas a esse problema, como radioterapia, terapias alvo, imunoterapias, transplantes de células-tronco e agentes endócrinos. Além disso, alterações na pigmentação, textura e crescimento capilar também podem ser encontradas.

Com isso, Freites-Martinez e colaboradores (2019) realizaram uma revisão dos transtornos capilares, visando contribuir para um melhor entendimento desses eventos adversos e otimizar sua avaliação e manejo.

Epidemiologia

A incidência estimada alopecia induzida pela quimioterapia citotóxica é aproximadamente de 65% e tende a variar conforme os medicamentos específicos e diferentes regimes. A condição de perda de cabelo é tipicamente observada em quase todos os pacientes submetidos à radioterapia de fótons (radioterapia tradicional) ou de prótons, e a intensidade e a taxa aumentam conforme a dose.

A incidência geral calculada de alopecia de qualquer grau foi relatada em 15% e 1-2% com o uso de terapias direcionadas e de inibidores de checkpoint imunológico, respectivamente.

Em quase 100% dos pacientes submetidos ao transplante de células-tronco hematopoéticas, a alopecia completa é atribuída às quimioterapias citotóxicas de condicionamento. Terapias endócrinas foram relacionadas ao transtorno capilar em até 25%. Enquanto a alopecia recebe a maior atenção entre os distúrbios capilares no campo da oncologia, mudanças na estrutura capilar (tornando-se encaracolados ou lisos) e na cor (hiper ou hipopigmentação) foram relatadas em aproximadamente 65% dos pacientes durante e após quimioterapias citotóxicas, em 30% daqueles que recebem terapias direcionadas e 2% com imunoterapias.

Características clínicas

Os distúrbios capilares em pacientes com câncer ocorrem devido a distúrbios no ciclo e funcionamento dos folículos pilosos, e síntese do eixo capilar, o que resulta em eflúvio durante as fases anágenas ou telógenas. As características clínicas variam dependendo da terapia antineoplásica administrada, sua meia-vida, dose, horário, via e velocidade de administração, se é administrada sozinha ou em combinação com outras terapias, bem como fatores do paciente.

A alopecia induzida por CIA geralmente começa dentro de semanas após a primeira dose de quimioterapia citotóxica como em eflúvio anágeno difuso com predominância em áreas de maior atrito, como as áreas da coroa e temporo-occipitais, que podem progredir para queda capilar completa em 2-3 meses. Além disso, a alopecia dos cílios, sobrancelhas e de outras áreas do corpo podem ser observadas em até 33% dos pacientes que recebem taxanos. Embora geralmente assintomática, também pode estar relacionada com tricodinia e prurido (11%). É tipicamente reversível dentro de 2-6 meses após a interrupção da quimioterapia. Achados tricoscópicos incluem pontos pretos, amarelos, cabelos em formato de ponto de exclamação, e mudanças de cor e espessura ao longo do eixo do cabelo.

A alopecia induzida por radioterapia (RIA) é caracterizada por um eflúvio anágeno devido ao dano agudo do folículo piloso. Uma mancha confinada à área de radioterapia é geralmente observada de 1 a 3 semanas após a primeira irradiação, e o crescimento capilar geralmente ocorre de 2 a 6 meses após o procedimento. A dermatite por radiação e a lesão cutânea também podem acompanhar a queda capilar. Pontos amarelos e pretos foram descritos como os principais achados tricoscópicos em 60% da RIA, seguidos por cabelos velus curtos (50%), sinal peripilar (20%) e cabelos quebrados (10%), achados tricoscópicos também descritos na alopecia areata e na alopecia androgenética.

Enquanto a alopecia difusa leve é frequentemente relatada com inibidores do receptor do fator de crescimento epidérmico, a cicatricial foi manifestada em 5% dos pacientes tratados com cetuximabe, o que pode ser uma consequência de uma infecção bacteriana secundária no couro cabeludo.

Entre os pacientes submetidos ao transplante de células-tronco, a alopecia difusa é relatada em associação com o regime de condicionamento em cerca de 100%. Mudanças capilares podem ocorrer com a doença do enxerto versus hospedeiro aguda, incluindo características de alopecia não cicatricial com afinamento capilar difuso, perda de cabelo em áreas específicas e embranquecimento prematuro.

Terapias endócrinas foram associadas ao transtorno capilar, geralmente de gravidade leve, com um padrão semelhante à alopecia androgenética. Apesar de a maioria dos casos de perda de cabelo em pacientes com câncer ser transitória, 14% e 30% dos sobreviventes de tumores na infância e de mama desenvolverão a condição persistente ou até mesmo permanente, respectivamente.

As mudanças texturais e pigmentares no cabelo são frequentes com as terapias antineoplásicas; no entanto, estas são reversíveis após a interrupção do medicamento. Dentre essas, pode-se citar a despigmentação e hiperpigmentação, mais evidente no couro cabeludo, embora as sobrancelhas, cílios e pelos do corpo também possam ser afetados. A hipopigmentação capilar foi relatada com os inibidores de tirosina quinase do receptor do fator de crescimento epidérmico (EGFR) (pazopanibe, sunitinibe, regorafenibe), enquanto os inibidores do EGFR resultam em hiperpigmentação do cabelo do couro cabeludo e facial (cerca de 50%). A repigmentação foi descrita como um possível marcador de resposta ao tumor em 14 pacientes recebendo terapia anti-PD1/anti–PD-L1 para câncer de pulmão.

Além disso, o cabelo liso pode se tornar cacheado ou ondulado em 65% dos pacientes com câncer após o tratamento com quimioterapia citotóxica. Com terapias direcionadas, o crescimento do cabelo no couro cabeludo pode desacelerar, tornar-se mais fino, cacheado e quebradiço.

O crescimento excessivo de cabelo sobre a área periocular, hirsutismo e tricomegalia foram relatados principalmente como um evento adverso dos inibidores do receptor do fator de crescimento epidérmico. Essas alterações geralmente se resolvem após a interrupção do tratamento, embora em alguns casos possam persistir por vários meses.

Etiologia e mecanismos patogênicos

Embora a manifestação clínica da alopecia induzida por diferentes terapias possa ser semelhante, evidências sugeriram que as bases moleculares foram variadas e compartilhavam várias vias moleculares de resposta ao dano.

A alopecia induzida por radioterapia é um dano agudo relacionado ao tratamento, dependente da dose, às células da matriz ativamente divididas dos folículos anágenos, seguido pela queda telógena devido à entrada prematura em fase catágena dos folículos no final da anágena. Doses tão baixas quanto 2 Gy em uma única fração mostraram causar alopecia temporária.

As terapias alvo funcionam bloqueando vias oncogênicas necessárias para o crescimento e sobrevivência celular. Em camundongos, a desregulação da via EGFR-Ras-Raf pode resultar em morfogênese anormal do folículo piloso. No entanto, não se sabe por que paradoxalmente, os inibidores do EGFR resultam em alopecia no couro cabeludo, mas causam hirsutismo e tricomegalia nas sobrancelhas e cílios.

As imunoterapias (anti-CTLA-4, PD-1, PDL1) e os transplantes de células-tronco também podem resultar na queda capilar, com um padrão clínico e histológico consistente com alopecia areata, provavelmente devido à ativação de respostas inflamatórias contra antígenos do folículo piloso e um desequilíbrio da tolerância imunológica no ambiente do folículo piloso.

Os mecanismos pelos quais as terapias endócrinas resultaram em alopecia é através do antagonismo dos efeitos de prolongamento da fase anágena do 17-β-estradiol e resultam em ações inibitórias do crescimento capilar aumentadas dos andrógenos, o que provavelmente se reflete pelo desenvolvimento de afinamento capilar com um padrão predominantemente androgenético.

As mudanças pigmentares nos cabelos em crescimento podem ser explicadas por uma transferência prejudicada de melanina dos queratinócitos do folículo piloso para a haste do cabelo e a geração de um dano oxidativo, com indução de apoptose dos melanócitos do folículo piloso e das células-tronco de melanócitos. As modificações na estrutura dependem de múltiplos parâmetros interativos, incluindo queratinas do eixo capilar e proliferação assimétrica de células do folículo piloso.

Qualidade de vida

Os eventos adversos relacionados ao cabelo têm um impacto profundo na qualidade de vida (QoL) dos pacientes com câncer. A alopecia induzida pela quimioterapia é um dos eventos adversos mais clinicamente visíveis e angustiantes e foi citada como o mais perturbador previsto por 58% das pacientes com câncer de mama antes da quimioterapia. O impacto pode ser tão imenso que lidar com a perda de cabelo foi considerado mais difícil do que com a perda de uma mama e até mesmo pode levar os pacientes a recusarem o tratamento (8%).

Manejo
  • Alopecia Induzida por Terapias Antineoplásicas

O manejo da alopecia induzida por terapias antineoplásicas pode ser amplamente dividido em estratégias preventivas e reativas:

Estratégias preventivas

Não existem estratégias farmacológicas preventivas que tenham demonstrado eficácia satisfatória para justificar seu uso generalizado. Por exemplo, o minoxidil tópico a 2% duas vezes ao dia não mostrou benefício na prevenção da alopecia induzida por quimioterapia em um estudo prospectivo com 10 pacientes. No entanto, em um ensaio randomizado com 22 pacientes, a solução reduziu a duração da alopecia em 50 dias em comparação com o placebo.

O resfriamento do couro cabeludo tornou-se o método mais amplamente utilizado para a prevenção da alopecia induzida por quimioterapia. Os mecanismos plausíveis para essa proteção incluem a redução da disponibilidade do medicamento citotóxico para o folículo piloso (a vasoconstrição induz uma diminuição de 20% do fluxo sanguíneo do couro cabeludo), a redução relativa da absorção e da atividade metabólica folicular.

O sucesso do resfriamento do couro cabeludo parece depender do tipo de regime de quimioterapia. Em um estudo prospectivo com 124 mulheres com câncer de mama recebendo quimioterapia baseada em taxano, o método conferiu proteção contra a perda de cabelo em 66%. Em outro ensaio, a preservação capilar foi observada em 50% (grupo de resfriamento) versus 0% (controles) após o 4º ciclo de quimioterapia (taxano/antraciclina/ou ambos). Em relação à segurança, os eventos adversos mais comuns do dispositivo incluem dor de cabeça (11%), náuseas (4%) e tonturas (3%).

No entanto, não há dados da eficácia dos dispositivos de resfriamento do couro cabeludo na alopecia persistente, portanto, seu uso não pode ser recomendado para esse fim. Além disso, não foi eficaz para prevenir a alopecia induzida por radioterapia.
Estratégias reativasImunoterapias e transplante de células-tronco foram relacionados com alopecia areata. Camuflagem e cuidados de suporte devem ser fornecidos aos pacientes com alopecia induzida por quimioterapia.
  • Alopecia de Cílios e Sobrancelhas

Cosméticos e produtos de camuflagem podem ser usados enquanto os cílios ainda estiverem presentes. Ademais, estudos demonstraram a eficácia da solução de bimatoprosta a 0,03% na hipotricose, com um aumento no comprimento e espessura dos fios.

  • Alterações Pigmentares e Texturais nos Cabelos

A repigmentação capilar e as alterações na textura do cabelo foram relatadas com terapias alvo e imunoterapias. Geralmente, a maioria dos pacientes gosta das novas características do cabelo. No entanto, se o gerenciamento for solicitado, opções como tingimento capilar e mudanças no penteado (ou seja, alisamento ou encaracolamento) devem ser recomendadas.

  • Hirsutismo, Hipertricose e Tricomegalia

A laserterapia e a fotodepilação são os tratamentos mais eficazes, especialmente em pacientes com pele clara e cabelos escuros. Para tricomegalia de cílios e sobrancelhas, o corte e o encaminhamento a um oftalmologista são indicados para pacientes com sintomas oculares.

Conclusão

Apesar da prevalência e do impacto psicossocial dos distúrbios capilares induzidos pela terapia anticâncer, a pesquisa sobre sua apresentação clínica, fisiopatologia e estratégias de manejo não recebeu a atenção que merece. Um conhecimento abrangente do impacto desses transtornos na qualidade de vida seria fundamental para otimizar o processo de tomada de decisão compartilhada entre médicos e pacientes em relação às terapias contra o câncer.