Uma guia para a prática clínica

Amenorreia hipotalâmica funcional

Causa frequente de amenorreia secundária em mulheres férteis não grávidas

Autor/a: Mariam Saadedine, Ekta Kapoor, Chrisandra Shufelt

Fuente: Mayo Clin Proc. n September 2023;98(9):1376-1385.

Indice
1. Texto principal
2. Referências bibliográficas

A amenorreia hipotalâmica funcional (AHF) é responsável por aproximadamente um terço dos casos de falta de menstruação em mulheres em idade reprodutiva

Embora as principais características clínicas da AHF sejam a amenorreia e a infertilidade, o distúrbio é uma neuroendocrinopatia complexa caracterizada por hipoestrogenemia e outros fatores que afetam a função de múltiplos sistemas, incluindo distúrbios ósseos, psicológicos, cognitivos e cardiovasculares.

Para fazer um diagnóstico oportuno e um tratamento adequado da doença nas mulheres afetadas, os médicos devem estar preparados para reconhecer esta condição e compreender a sua fisiopatologia.

Tipos de amenorreia hipotalâmica funcional e fisiopatologia

A AHF é a cessação do ciclo menstrual na ausência de uma patologia anatômica, que advém da estimulação ou supressão inadequada do eixo hipotálamo-hipófise-ovário (eHHO). Tanto o hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH) quanto o hormônio luteinizante (LH) requerem pulsatilidade para a ovulação e padrão menstrual normal.

Na AHF, vários fatores desencadeantes, incluindo estressores psicossociais e desequilíbrio energético, alteram a secreção pulsátil de GnRH e LH, resultando em anovulação e amenorreia. Esta condição pode ser categorizada em 3 tipos com base na causa primária: estresse psicossocial, alimentação desordenada/restritiva e/ou exercício excessivo. Em muitos casos, é uma combinação de mais de uma etiologia, com possível predisposição genética ou epigenética.

> Impacto do estresse psicossocial

A exposição ao estresse psicossocial aumenta a ativação do eHHO, que por sua vez aumenta a secreção do hormônio corticotrofina (CRH) e de glicocorticóides como o cortisol. Sabe-se que pacientes com AHF apresentam níveis aumentados de cortisol matinal e de 24 horas. O aumento do CRH e dos glicocorticóides pode inibir o eHHO em diferentes níveis.

Os glicocorticóides atuam diretamente nos neurônios hipotalâmicos liberadores de GnRH e inibem sua síntese e secreção. Evidências recentes sugeriram que tanto o CRH quanto os glicocorticoides tem potencial para interagir com os neurônios da kisspeptina no hipotálamo. Esses secretam a proteína Kisspeptina, que estimula diretamente a síntese e liberação de GnRH.

Níveis aumentados de estresse estão associados a níveis mais baixos de kisspeptina.  Os receptores CRH e glicocorticóides que inibem potencialmente a síntese e liberação dessa proteína.

> Impacto do desequilíbrio energético/metabólico

A alteração da disponibilidade de energia é definida como a diferença entre a entrada e o gasto metabólico. Para preservar as funções corporais normais é necessário manter um valor mínimo energia. Quando se está em baixa, pode ser devido ao excesso de gasto (exercício excessivo, estado hipermetabólico) e/ou baixa ingestão (padrão alimentar restritivo ou escassez de alimentos). Embora o mecanismo exato seja desconhecido, a baixa disponibilidade de energia tem sido associada à supressão de eHHO.

Como os níveis de GnRH são difíceis de medir, a medição do LH, um índice preciso da secreção de GnRH, é útil para estudos em humanos. Estudos demonstraram que a redução da disponibilidade energética através da modificação dos hábitos alimentares e da prática de exercícios abaixo de um determinado limite, em mulheres que menstruam normalmente, altera a pulsatilidade do LH. Estes resultados implicaram que uma resposta adaptativa produzida num estado de baixa disponibilidade energética prioriza outras funções fisiológicas reprodutivas.

A AHF pode ocorrer no contexto de uma situação de peso corporal normal, uma vez que até 40% dos pacientes apresentam comportamentos bulímicos e de restrição alimentar. Quando é resultado de uma dieta restritiva, o padrão inclui redução da ingestão de gordura e aumento da ingestão de fibras. Por outro lado, apesar de apresentar maior percentual de massa magra (músculo), é reduzida em comparação aos controles da mesma idade. Esses fatores resultam em diversas alterações metabólicas, como baixos níveis de leptina, adiponectina e insulina, e níveis mais elevados de grelina.

A leptina e a adiponectina são hormônios anorexígenos (suprimem o apetite) secretados pelo tecido adiposo, enquanto a grelina é um hormônio orexígeno (estimula o apetite) que é secretado no estômago. Por outro lado, a insulina é um hormônio anorexígeno secretado no pâncreas. Embora esses fatores influenciem o metabolismo energético, eles também atuam diretamente nos neurônios da kisspeptina no hipotálamo.

Fatores anorexígenos, como a leptina e a insulina, estimulam os neurônios da kisspeptina, enquanto fatores orexígenos, como a grelina, os inibem. Assim, o efeito líquido das alterações metabólicas em pacientes com AHF é a supressão dos neurônios da kisspeptina que, por sua vez, suprimem o eHHO.

> Impacto da genética/epigenética

Há evidências crescentes de que a AHF pode estar associada a uma predisposição genética.

Várias variantes heterozigóticas de genes envolvidos em formas congênitas de deficiência de GnRH (hipogonadismo hipogonadotrófico idiopático) foram identificadas em mulheres com AHF. No entanto, estas também foram encontradas em algumas mulheres com ciclos menstruais normais, sugerindo que a amenorreia pode resultar da combinação de uma predisposição genética juntamente com fatores desencadeantes externos.

A resposta ao estresse também é regulada geneticamente. Por exemplo, pacientes com AHF apresentam menor expressão do fator neurotrófico derivado do cérebro, um gene expresso no hipotálamo e envolvido na neuroplasticidade. Essa é a capacidade do sistema nervoso de sofrer mudanças estruturais e funcionais, alterando a força das conexões neuronais. Portanto, as mulheres com AHF podem ter respostas alteradas ao estresse que as predispõem a essa condição.

Os fatores epigenéticos ainda não foram estudados em mulheres com AHF e são, portanto, áreas potenciais para pesquisas futuras. No entanto, trabalhos recentes em modelos animais destacaram a importância da epigenética no desenvolvimento e funcionamento da regulação neuronal do GnRH; que inclui fatores de transcrição, microRNA e metilação e desmetilação do DNA. Embora a AHF seja uma consequência do estresse, dos padrões alimentares e do exercício excessivo, algumas mulheres podem estar mais predispostas à AHF devido à sua composição genética e aos fatores epigenéticos que alteram a produção e a função do GnRH.

Consequências da AHF para a saúde

> Saúde óssea

O estrogênio estimula a formação óssea e inibe a reabsorção óssea, enquanto o hipoestrogenismo reduz esses benefícios.

Nas mulheres, o pico de massa óssea dos ossos longos é adquirido antes dos 20 anos de idade, e a massa esquelética total atinge o pico entre os 26 e os 30 anos mais tarde. Entre 40% e 60% do crescimento ósseo ocorre no final da adolescência.

Dada a juventude dos pacientes com AHF, uma grande preocupação é o impacto adverso na saúde óssea. Além da hipoestrogenemia, a baixa massa magra em pacientes com AHF é um preditor independente de menor densidade mineral óssea (DMO). Por outro lado, a deficiência energética está associada à resistência ao hormônio do crescimento e aos baixos níveis do fator de crescimento semelhante à insulina (IGF-1), necessário para estimular o crescimento ósseo.

Níveis elevados de cortisol na AHF estão associados à redução da atividade osteoblástica, ao aumento da atividade osteoclástica, à absorção prejudicada de cálcio, à manipulação renal prejudicada do cálcio e à redução da secreção do hormônio do crescimento e do IGF-1, todos os quais diminuem a DMO. Mulheres com AHF apresentam níveis mais baixos de leptina, que normalmente estimula o crescimento ósseo e inibe a reabsorção.

> Saúde psicológica e cognitiva

Descobriu-se que as mulheres com AHF apresentam taxas mais elevadas de perfeccionismo, incluindo níveis mais elevados de preocupação com erros e padrões pessoais.

A AHF e os transtornos psicológicos têm uma relação bidirecional. O hipoestrogenismo está relacionado ao comprometimento da função cognitiva, potencialmente devido ao papel do estrogênio na indução da formação de sinapses em múltiplas áreas do cérebro, incluindo o hipocampo e o córtex cerebral. Além disso, o hormônio modula a síntese e secreção de múltiplos neurotransmissores, como a dopamina e a serotonina, o que pode explicar as taxas mais elevadas de depressão e ansiedade em mulheres com AHF.

O aumento do estresse em mulheres com depressão e ansiedade pode suprimir ainda mais o eHHO e levar à amenorreia. Além dos efeitos da hipoestrogenemia, foram encontrados níveis mais baixos de leptina e níveis mais elevados de cortisol em pacientes com distúrbios alimentares, ansiedade e depressão, o que pode ser responsável por alguns destes sintomas psicológicos.

> Saúde cardiovascular

O estrogênio endógeno tem sido associado a um efeito favorável no sistema cardiovascular, incluindo a melhora da vasodilatação e a manutenção da homeostase endotelial. Por outro lado, reduz a produção de espécies reativas de oxigênio e a oxidação de lipoproteínas de baixa densidade, e inibe a proliferação de músculo liso, sendo estes mecanismos potenciais protetores contra a doença aterosclerótica.

A função vascular também é influenciada por múltiplos hormônios neuroendócrinos, como a adiponectina e o cortisol, que estão desregulados em mulheres com AHF, potencialmente predispondo-as à disfunção vascular. No Nurses Health Study, uma maior irregularidade ou ausência do ciclo menstrual foi associada a um risco aumentado de até 50% de um futuro evento de doença cardiovascular. No entanto, não diferenciou o fenótipo da AHF de outras etiologias de irregularidade menstrual, como a síndrome dos ovários policísticos (SOP).

O estudo Women's Ischemia Syndrome Evaluation (WISE) descobriu que a hipoestrogenemia de origem hipotalâmica estava associada a um risco aumentado de doença arterial coronariana angiográfica em mulheres na pré-menopausa. Mesmo após ajuste para múltiplos fatores de risco cardiovascular, a hipoestrogenemia hipotalâmica permaneceu um preditor significativo de doença arterial coronariana.

> Esterilidade

Embora a amenorreia seja a marca registrada da AHF, as mulheres muitas vezes procuram tratamento quando não conseguem engravidar. A maioria são amenorreicas, mas um subgrupo menor que apresenta infertilidade sem amenorreia ainda apresenta evidências de desregulação hipotalâmica.

O hormônio antimülleriano, produzido pelo desenvolvimento do folículo ovariano e um marcador da reserva funcional ovariana, é normal a ligeiramente aumentado em mulheres com AHF, refletindo a potencial reversibilidade da infertilidade.

Como tal, estudos relataram que a administração pulsátil de GnRH pode restaurar a ovulação e aumentar as chances de concepção nessas pacientes. No entanto, as mulheres podem estar em risco de resultados adversos na gravidez devido aos seus comportamentos pouco saudáveis, como alimentação restritiva e desnutrição, baixo peso corporal ou possivelmente consequências vasculares associadas ao hipoestrogenismo.

Diagnóstico

Embora a AHF seja uma das causas mais comuns de amenorreia secundária em mulheres não grávidas em idade reprodutiva, é um diagnóstico de exclusão. É definida como a ausência de menstruação por pelo menos 3 meses consecutivos. AHF é caracterizada por um padrão de baixos níveis de estrogênio (frequentemente <50 pg/ml), hormônio folículo-estimulante (FSH) (frequentemente <10 mUI/ml) e LH (frequentemente <10 mUI/ml).

Por outro lado, a relação LH:FSH é normal a baixa vs. relação LH:FSH aumentada na SOP enquanto os níveis de testosterona são normais (vs. normalmente diminuídos na SOP). Além da AHF e da gravidez, o diagnóstico diferencial da amenorreia secundária inclui SOP, insuficiência ovariana prematura, disfunção tireoidiana e hiperprolactinemia. O diagnóstico de AHF também deve ser considerado em mulheres com amenorreia primária porque constitui 3% destes casos.

Uma história clínica completa e semiologia ajudarão no diagnóstico diferencial da amenorreia secundária. Por exemplo, uma história de radioterapia, quimioterapia, doença autoimune ou história familiar de insuficiência ovariana prematura poderia confirmar esta etiologia, enquanto hirsutismo, acne, ganho de peso ou presença de obesidade central podem sugerir um diagnóstico de SOP. A história completa também deve incluir uma revisão dos hábitos alimentares e de exercícios, alterações no peso e uma avaliação do estresse psicológico. Embora nem todas as mulheres com AHF sejam diagnosticadas com transtorno alimentar propriamente dito, muitas delas relatarsm sintomas de transtorno alimentar.

O Eating Disorder Examination Questionnaire é uma ferramenta validada que pode ser usada para identificar pessoas com transtornos alimentares. Alternativamente, o Teste de Atitudes Alimentares de 26 perguntas é um questionário de 26 perguntas que pode rastrear preocupações com imagem corporal e peso, especialmente em pacientes que não têm um transtorno alimentar definido.

Como não existe uma ferramenta validada para detectar exercício excessivo, alguns pesquisadores sugeriram o uso da Escala de Estresse Percebido para detectar estresse excessivo e facilitar a conversa sobre outras práticas extremas, como exercício excessivo e alimentação restritiva.

O uso de um dispositivo de monitoramento remoto do paciente que monitora o exercício pode ser uma nova maneira de quantificar minutos ou horas semanais de exercício. Além disso, um histórico médico detalhado deve concentrar-se na detecção de doenças de má absorção, como a doença de Crohn ou a doença celíaca, que podem exercer stress corporal crónico e, portanto, influenciar a eHHO.

Manejo

Dada a etiologia multifatorial da AHF, o seu manejo envolve a identificação precisa e a reversão das causas subjacentes. Uma das principais áreas de interesse é a modificação intensiva do estilo de vida para substituir comportamentos inadequados relacionados à ingestão calórica e à atividade física. Sempre que possível, a abordagem terapêutica deve ser multidisciplinar, composta por médico, nutricionista e especialista em saúde mental. Embora as evidências sobre a terapia cognitivo-comportamental sejam limitadas, ela deve ser incorporada ao plano de tratamento sempre que possível.

Um estudo relatou que 16 sessões desta terapia realizadas durante um período de 20 semanas, com o objetivo de estabelecer padrões alimentares saudáveis, identificar atitudes inadequadas em relação à perda de peso e à alimentação, combatê-las e melhorar os mecanismos de enfrentamento do estresse, restauraram a função ovulatória e reverteram a desregulação do sistema neuroendócrino presente na AHF.

Especificamente, a terapia cognitivo-comportamental diminuiu significativamente os níveis noturnos de cortisol com aumento dos níveis de leptina e tireotropina, melhorando assim as funções ovulatórias e metabólicas em pacientes com AHF. Contudo, o resultado dessa terapia depende em grande parte da vontade dos pacientes em participar no plano de tratamento. Por outro lado, a recomendação atual baseia-se numa amostra pequena e exclusivamente em pacientes com problemas de stress psicológico como causa subjacente. Não está claro se este tratamento é igualmente eficaz em mulheres com AHF causada por transtorno alimentar, perda excessiva de peso e/ou exercício excessivo.

De acordo com as diretrizes da Endocrine Society, se a menstruação não for retomada após 6 a 12 meses de modificações no estilo de vida, recomenda-se o tratamento com um ciclo curto de estrogênio transdérmico com progesterona cíclica. Esta recomendação foi baseada em um estudo de pacientes com anorexia nervosa e amenorreia por pelo menos 3 meses consecutivos que melhoraram a DMO após 6, 12 e 18 meses de tratamento com estradiol transdérmico (adesivo de 100 mg aplicado 2 vezes/semana). medroxiprogesterona (2,5 mg/dia durante 10 dias por mês) em comparação com placebo. No entanto, a recomendação quanto à dosagem e duração do uso não é clara.

A terapia hormonal oral e a terapia contraceptiva hormonal não são recomendadas.

Esta diretriz baseia-se numa revisão sistemática que constatou uma falta de benefícios significativos destas intervenções de saúde óssea em pacientes com AHF. Este resultado pode ser devido a um efeito regulador negativo dos estrogénios orais sobre o IGF-1, um mediador crucial do crescimento ósseo e da mineralização durante a puberdade. Também pode ser explicado pela complexidade neuroendócrina da AHF, como o hipercortisolismo e a diminuição dos níveis dos hormônios tireoidianos, que influenciam a saúde óssea nesta população de pacientes.

Além disso, o efeito da terapia de reposição hormonal na saúde vascular é desconhecido. A bomba de GnRH pulsátil subcutânea implantável (não disponível nos EUA) demonstrou ser segura e eficaz no restabelecimento da ovulação em algumas pacientes com AHF associada à infertilidade e, teoricamente, no restabelecimento da pulsatilidade do GnRH, o que pode reverter parte da disfunção metabólica.

Uma vez estabelecido o diagnóstico de AHF, recomenda-se avaliar a DMO basal com absorciometria radiológica de dupla energia em pacientes com ≥6 meses de amenorreia. Essa se deve à alta prevalência de transtornos alimentares aliados ao exercício excessivo observada em pacientes com AHF. Os pacientes também devem ser avaliados quanto a deficiências nutricionais, como vitamina D (os níveis devem exceder 30 mg/ml) e cálcio (a ingestão diária de cálcio deve ser de 1.000 a 1.500 mg/dia), e suplementos devem ser fornecidos se necessário.

Conclusão

A amenorreia hipotalâmica funcional é uma neuroendocrinopatia complexa e uma doença comum que causa amenorreia secundária em mulheres jovens. Esta condição resulta em hipogonadismo hipotalâmico e infertilidade devido ao estresse psicossocial, alimentação desordenada e/ou exercício excessivo

Embora a maioria das mulheres pareça saudável, há consequências a longo prazo na saúde óssea, cardiovascular, psicológica e cognitiva.

Abordar os eventos desencadeantes subjacentes pode reverter esta condição e potencialmente restaurar tanto o eixo hipotálamo-hipófise-ovário quanto o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. É muito importante reconhecer este diagnóstico e compreender a fisiopatologia, para planejar manejo e intervenções adequadas.