Resumo A definição atual de pré-diabetes é controversa e sujeita a debates contínuos. No entanto, o é um fator de risco para diabetes tipo 2, tem alta prevalência e está associado a complicações diabéticas e mortalidade. Portanto, tem o potencial de se tornar um preditor para os sistemas de saúde no futuro, exigindo ações dos provedores de saúde e legisladores. Mas qual a melhor forma de reduzir a carga associada à saúde? Blondm e colaboradores (2023) sugeriram estratificar as pessoas com pré-diabetes de acordo com o risco estimado e apenas oferecer intervenções preventivas em nível individual para pessoas de alto risco. Ao mesmo tempo, defenderam a identificação de pessoas com a condição e complicações relacionadas ao diabetes e tratá-las como seriam tradas pessoas com diabetes tipo 2 estabelecido. |
Introdução |
Há mais de 20 anos, a Associação Americana de Diabetes (ADA) substituiu os termos "tolerância à glicose prejudicada" (TGA) e "glicose em jejum prejudicada" (IAG) por "pré-diabetes" em seus padrões de tratamento, um movimento controverso que provocou discussões acaloradas debate desde então.
Os defensores da mudança argumentaram que o termo é útil para prevenção potencial no nível individual, enquanto os oponentes alegaram que rotular todos os indivíduos com hiperglicemia intermediária como tendo uma condição preexistente poderia medicalizar uma grande parte da população que não necessitaria da mesma.
A disputa também incluiu a definição de pré-diabetes/hiperglicemia intermediária e como realizar o manejo desses indivíduos. Apesar da controvérsia, o termo pré-diabetes encontrou seu uso com (alguns) prestadores de cuidados de saúde e organizações governamentais.
Por que pessoas com pré-diabetes devem ser identificadas? |
A prevalência é alta e, em média, as pessoas com pré-diabetes correm maior risco de desenvolver diabetes, complicações diabéticas e outras doenças relacionadas, em comparação com aquelas com níveis normais de glicose no sangue. Consequentemente, o ônus da condição metabólica para a saúde da população é substancial, o que reforça a necessidade de iniciar ações preventivas precocemente para evitar o desenvolvimento de doenças.
No entanto, ao mesmo tempo, há grande heterogeneidade no risco individual de pessoas com pré-diabetes. E nesse ponto que reside o quebra-cabeça: como garantir a intervenção precoce naqueles com problemas progressivos, tentando encontrar o equilíbrio entre sub e supertratamento? Esse equilíbrio é fundamental para evitar a medicalização desnecessária e o estigma, garantir o número necessário para tratar, no tempo e com os recursos exigidos pelos programas de prevenção, além de manter sob controle os gastos com saúde.
As opiniões sobre como realizar o manejo do pré-diabetes variam amplamente. Alguns apoiam a definição atual, enquanto outros propõem repensar a abordagem para identificar pessoas em risco, incluindo mais marcadores de risco. Há outros que querem abandonar completamente o conceito de pré-diabetes, inclusive foi sugerido diminuir o limiar para o diagnóstico de diabetes para incluir a faixa pré-diabética. Todas essas alternativas podem ter consequências positivas e negativas.
Definição e história de pré-diabetes e hiperglicemia intermediária |
O diabetes tipo 2 é uma doença metabólica multifatorial e multissistêmica.
No entanto, por razões históricas e práticas, o diagnóstico de diabetes e pré-diabetes é baseado apenas na glicemia ou nos níveis de HbA1c.
O Pré-diabetes é definido como a presença de hiperglicemia intermediária na forma de pelo menos um dos seguintes: “tolerância à glicose prejudicada” (TGP), “glicemia de jejum prejudicada” (GJP) ou HbA1c ligeiramente elevada. No entanto, a sobreposição entre indivíduos identificados como tendo essa condição metabólica usando os diferentes critérios é relativamente baixa. Por outro lado, apesar do fato de que a literatura não mostra um limite claro para o risco de diabetes posterior, pontos de corte específicos, mas variáveis, são usados para definir pré-diabetes/hiperglicemia intermediária.
Tolerância diminuída à glicose (TGP) foi introduzida em 1979/1980 para cobrir a faixa de glicose entre diabetes e tolerância normal à glicose. A mesma dose de glicose é usada para todos os indivíduos, enquanto as mulheres geralmente apresentam níveis de glicose plasmática de 2 h mais altos do que os homens, devido em parte às diferenças no tamanho do corpo e no volume de distribuição.
A glicemia de jejum prejudicada (GJP) foi introduzida em 1991 e definida de forma que a sua prevalência fosse semelhante com a de TGP no estudo de coorte do Paris Prospective Study. O ponto de corte inferior para GJP no estudo foi de 6,1 mmol/l (TL: 110,90 mg/dl). O valor ainda é utilizado pela OMS. Em 2003, a ADA baixou esse ponto de corte para 5,6 mmol/l (TL: 101,83 mg/dl), com o qual a sua prevalência aumentou dramaticamente. A OMS não adotou o nível mais baixo de glicemia de jejum devido à falta de evidência de benefício em termos de redução de desfechos adversos.
Em 2008, um comitê de especialistas com membros da ADA e IDF (Federação Internacional de Diabetes) concluiu que a HbA1c era uma medida confiável de hiperglicemia crônica associada a complicações de longo prazo. Portanto, foi sugerido que essa poderia ser usada para o diagnóstico de diabetes. O comitê de especialistas também afirmou que aqueles com níveis de HbA1c de 42 mmol/L (6%) a 47 mmol/mol (6,4%) deveriam receber intervenções preventivas devido à probabilidade relativamente alta de progressão para diabetes. Eles também levantaram preocupações sobre o uso do termo “pré-diabetes” para rotular esse grupo de pessoas, uma vez que nem todas as pessoas com HbA1c nessa faixa desenvolverão diabetes. Em 2010, a ADA ampliou que a HbA1c de alguns riscos varia entre 5,7 e 6,4%. No enatando a IDF não adotou essas mudanças.
Ao usar HbA1c como a principal ferramenta de diagnóstico tanto para pré-diabetes quanto para o diabetes, é importante observar que fatores além da glicose plasmática contribuem para a variação de HbA1c, especialmente na faixa não diabética. Por outro lado, há evidências de uma crescente discrepância entre HbA1c e outras medidas de glicose plasmática com o aumento da idade, mas isso precisa de mais investigação.
Prevalência da pré-diabetes e o risco de doenças futuras |
No nível individual, os níveis de glicose no sangue e a progressão para diabetes tipo 2 são o resultado de uma complexa interação entre a composição genética e o ambiente social e físico. A prevalência de pré-diabetes depende das características da população, bem como dos critérios diagnósticos utilizados. Consequentemente, se um indivíduo é diagnosticado com a condição, os pontos de corte são utilizados somente em seu país de residência, poir isso, muitas vezes não é possível comparar estimativas de prevalência entre países/estudos.
No entanto, independentemente dos critérios diagnósticos utilizados, uma proporção significativa da população adulta mundial apresenta pré-diabetes definido como hiperglicemia intermediária. Por exemplo, a sua prevalência estimada foi de aproximadamente 50% em um grande estudo chinês e de aproximadamente 38% em outro dos EUA (ambas as estimativas são baseadas nos critérios da ADA para GAA, razão e pré-diabetes com base na HbA1c ) e 17% em uma coorte holandesa de adultos de 45 a 75 anos (usando os critérios da OMS para GAA e TGA).
Dependendo da definição utilizada e da população examinada, 10-50% das pessoas com pré-diabetes evoluirão para diabetes manifesto dos próximos 5 a 10 anos, com maior risco no grupo de indivíduos com “tolerância à glicose prejudicada” (TGP) e “Glicose em jejum prejudicada” (GJP). No entanto, ainda mais pessoas com pré-diabetes (cerca de 30 a 60%) retornarão aos níveis normais de glicose no sangue em 1 a 5 anos.
A alta prevalência e a taxa de conversão relativamente baixa para diabetes tipo 2 em 5 a 10 anos podem ser devidas, em parte, aos pontos de corte usados para definir pré-diabetes (particularmente com os critérios elevados da ADA e da Association of Clinical Endocrinologists) que se enquadram os limites de referência para os níveis de glicose relatados em populações de baixo risco, especialmente com o aumento da idade.
No entanto, pouco se sabe sobre o risco vitalício de diabetes tipo 2 em pessoas com pré-diabetes. Em um estudo holandês, o risco médio ao longo da vida de desenvolver diabetes tipo 2 em nível populacional era altamente dependente do tamanho do corpo. Para aqueles com GJP (com base nos critérios da OMS) e sobrepeso/obesos (IMC > 25 kg/m2), o risco foi >75% aos 45 anos, enquanto em indivíduos com OAG e IMC <25 kg/m2 foi de ~36%.
O pré-diabetes tem sido associado a uma longa lista de doenças atuais e futuras, incluindo doenças cardiovasculares, doença hepática gordurosa não alcoólica, neuropatia, doença renal crônica, câncer e demência, bem como mortalidade geral. O risco pode ser maior naqueles com TGP, embora faltem evidências sólidas.
Manejo para pacientes com pré-diabetes |
O diabetes tipo 2 pode ser evitado (ou pelo menos retardado) por mudanças intensivas no estilo de vida em pessoas com pré-diabetes, com a ressalva de que a maioria dos estudos incluiu pessoas com TGP, muitas vezes combinada com excesso de peso. Estudos demonstraram que as intervenções dirigidas à indivíduos com alto risco de diabetes tipo 2 são efetivas em relação à prevenção da doença metabólica, embora alguns pesquisadores tenham questionado se os estudos de prevenção à nível individual poderiam ser traduzidos para as condições do mundo real.
Os programas direcionados ao pré-diabetes como uma condição de diabetes de alto risco oferecem intervenções em nível individual, como por exemplo, o da ADA. No entanto, ficam dúvidas se os critérios diagnósticos para diabetes devem ser expandidos para incluir a faixa pré-diabética, resultando em um grande aumento no número de pessoas com diabetes, muitas das quais terão baixo risco de desenvolver complicações. Ou se a abordagem do pré-diabetes deve ser refinada calculando o risco de desenvolver diabetes, complicações e condições relacionadas e oferecendo apenas intervenções em nível individual para aqueles com maior risco.
Os cenários podem variar, mas até que ponto eles precisam ser investigados, incluindo uma avaliação de como esses impactos diferem entre países de baixa e alta renda e entre diferentes sistemas de saúde/bem-estar. Na verdade, o pré-diabetes é um tema controverso. “Alguns” pesquisadores afirmam que “preferem diminuir o limiar diagnóstico para diabetes para incluir a faixa pré-diabética (pontos de corte da OMS), enquanto outros preferem reservar o termo para pacientes com alto risco estimado. No entanto, independentemente das opiniões pessoais, não podem ignorar a carga substancial de doenças causadas por pré-diabetes/hiperglicemia intermediária, tanto agora quanto, ainda mais, no futuro."
Dados os recursos limitados disponíveis e a gravidade do problema, os autores sugeriram que o melhor compromisso é manter o termo pré-diabetes em sua forma atual, mas adotar uma abordagem estratificada de medicina de precisão para detecção e prevenção com base no risco estimado. Isso reconhece o risco variável entre os indivíduos com pré-diabetes e permite identificar aqueles que irão desenvolver complicações, apesar de não terem diabetes por definição bioquímica.
A abordagem escalonada ajudará a garantir que um número razoável de pacientes seja tratado com intervenções preventivas, enquanto controla os custos. Blondm e colaboradores (2023) sugeriram avançar no sentido de estratificar aqueles com pré-diabetes e sem para risco de diabetes a curto prazo e estimado ao longo da vida, complicações relacionadas ao diabetes e outras comorbidades. O risco estimado pode servir de base para conversas mais informadas no nível individual sobre a prevenção do diabetes e doenças relacionadas e, assim, auxiliar na tomada de decisão compartilhada.
Espera-se que a maioria das pessoas com risco baixo a moderado entre em uma forma de "espera vigilante" ao longo da vida, com reavaliação regular de seu risco e de outros fatores, como, como hipertensão, hiperlipidemia e controle de peso.
Intervir diante do desenvolvimento de diabetes evidente provavelmente tornará mais fácil retornar ao metabolismo "normal" da glicose em comparação com a remissão do diabetes. Como parte dessa abordagem, os autores sugeriram a triagem de pessoas com alto risco estimado de complicações prevalentes relacionadas ao diabetes. Se forem encontradas complicações, esses indivíduos devem ser tratados como se tivessem diabetes evidente, apesar de apresentarem níveis glicêmicos abaixo do limiar diagnóstico para diabetes. Inclinar-se para critérios diagnósticos bioquímicos nesses casos é o mesmo que ignorar que outros fatores, além da glicemia, desempenham um papel no desenvolvimento de complicações diabéticas.
Estudar a viabilidade de uma abordagem de triagem e tratamento para complicações diabéticas em indivíduos com alto risco de diabetes sem uma base bioquímica será um importante caminho para pesquisas futuras. Os autores argumentam que ele depende fortemente de mecanismos de risco que podem identificar com segurança o risco absoluto de uma série de resultados, tanto futuros quanto estabelecidos. Isso é parcialmente possível usando mecanismos de risco existentes, como o QDiabetes (NT: calculadora de risco de diabetes), mas, de acordo com os autores, modelos mais avançados são necessários para implementar sua sugestão. Esses mecanismos de risco devem ser capazes de prever de forma robusta o risco de uma variedade de resultados relevantes.
O próximo passo será estabelecer pontos de corte para estimativa de risco a partir dos quais oferecer intervenções no nível individual. Isso exigirá pesquisas sobre a relação custo-benefício, tanto para indivíduos com pré-diabetes (esforços versus ganhos potenciais em saúde pessoal) quanto para as sociedades. Da mesma forma, os autores incentivam a comunidade de pesquisa e os tomadores de decisão a aumentar a atenção e os recursos nessa área. Isso deve incluir um foco em como melhorar a entrega e comunicação de estimativas de risco para pessoas em risco. Se implementado, o refinamento da avaliação de risco abordará alguns dos desafios decorrentes do uso dos pontos de corte mais baixos para pré-diabetes sugeridos pela ADA, incluindo o valor preditivo positivo baixo/moderado do desenvolvimento de diabetes.
As aberrações metabólicas que levam ao diabetes, complicações diabéticas e outras doenças relacionadas são (provavelmente) crônicas e precisam de intervenções de longo prazo, se não vitalícias.
Atualmente, faltam evidências da eficácia a longo prazo dos programas de prevenção. Tais ensaios requerem recursos e um longo tempo de seguimento. A estratificação da intensidade do tratamento por risco estimado deveria teoricamente reduzir o número necessário para tratar e aumentar a probabilidade de que tais intervenções possam reduzir a incidência de resultados adversos. No entanto, isso não resolve o problema da adesão ao tratamento prolongado.
Se a abordagem for efetivamente reduzir a carga de saúde causada pelo pré-diabetes, uma importante via de pesquisa seria identificar quais intervenções são eficazes e toleráveis por períodos de tempo mais longos em subgrupos de pessoas com pré-diabetes. É importante ressaltar que a abordagem individual não pode ser a única, enfatizam os autores, acrescentando: “encorajamos fortemente os formuladores de políticas a priorizar abordagens baseadas na população”.
Intervenções em nível populacional têm o potencial de mudar a distribuição de risco de uma população e melhorar o perfil metabólico médio, o que beneficiará a população como um todo. Tais intervenções estão fora do alcance do sistema de saúde e devem contar com colaborações intersetoriais com forte liderança dos formuladores de políticas, que devem implementar mudanças estruturais na sociedade para promover uma vida mais saudável.
“Nós”, disseram os autores, “médicos e a comunidade científica somos importantes defensores a esse respeito, pois os políticos podem ser orientados nessa direção. Nesse ínterim, gostaríamos de lembrar a todos que o pré-diabetes não é uma doença, mas um fator de risco. Portanto, encorajamos que os médicos sejam cautelosos e não o rotulem como uma doença pré-existente real, ao abordar indivíduos, o público e os tomadores de decisão”.
Em conclusão, os autores defenderam uma abordagem mais refinada de risco e prevenção em pessoas com pré-diabetes para equilibrar os recursos gastos por indivíduos e sociedades.