Abordagem clínica

Hepatites virais: aspectos da epidemiologia e protocolo clínico

É a segunda maior causa de morte entre doenças infecciosas.

Autor/a: Geraldo Duarte, Paula Pezzuto, Tiago Dahrug Barros, Gláucio Mosimann Junior e Flor Ernestina Martínez-Espinosa

Fuente: Protocolo Brasileiro para Infecções Sexualmente Transmissíveis 2020: hepatites virais

Indice
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2. Referências Bibliográficas

As hepatites virais são doenças provocadas por diferentes agentes etiológicos, com tropismo primário pelo tecido hepático, apresentando características epidemiológicas, clínicas e laboratoriais semelhantes, porém com importantes particularidades.1

Atualmente, as hepatites virais são divididas em 5 subtipos:

  • Hepatite A (HAV): pertence à família Picornaviridae e seu genoma é composto por ácido ribonucleico (RNA), comumente transmitido por meio de contato orofecal e ingestão de água ou alimentos contaminados. Sua transmissão sexual tem sido relatada especialmente entre homens que fazem sexo com homens, o que reforça a necessidade de incluir as medidas de prevenção entre adultos.2-6
  • Hepatite B (HBV): pertence à família Hepadnaviridae e seu genoma é composto por ácido desoxirribonucleico (DNA). Os meios mais frequentes de transmissão do HBV são a exposição parenteral ou percutânea, vertical e sexual.5 7 O sangue é o veículo de transmissão mais importante, mas outros fluidos também podem transmitir o HBV, como sêmen e conteúdo vaginal.7
  • Hepatite C (HCV): pertence à família Flaviviridae, cujo material genético é formado por fita única de RNA. Sua transmissão ocorre por meio da exposição percutânea, sexual e vertical. O maior número de novas infecções vem sendo observado entre usuários de drogas injetáveis e pelo compartilhamento de seringas.8,9
  • Hepatite D (HDV): pertence à família Deltaviridae, cujo material genético é formado por um RNA defeituoso que tem a capacidade de se replicar apenas na presença do HBV. Os meios de transmissão são os mesmos da HBV.10
  • Hepatite E: pertence à família Caliciviridae, cujo material genético é formado por um RNA. A hepatite E ocorre tanto sob forma epidêmica, como de forma esporádica, em áreas endêmicas de países em desenvolvimento. A via de transmissão fecal-oral favorece a disseminação da infecção nos países em desenvolvimento, onde a contaminação dos reservatórios de água mantém a cadeia de transmissão da doença. A transmissão interpessoal não é comum. Em alguns casos os fatores de risco não são identificados.10

Atualmente, existem 325 milhões de pessoas no mundo vivendo com hepatite B ou C. Em 2017, 2,85 milhões de indivíduos se infectaram com a doença. Anualmente, as hepatites B e C causam 1,4 milhões de mortes no mundo.11 É a segunda maior causa de morte entre doenças infecciosas depois da tuberculose, e 9 vezes mais pessoas são infectadas com hepatite do que com HIV. A hepatite é evitável, tratável, e no caso da hepatite C, curável. No entanto mais de 80% das pessoas que vivem com hepatite carecem de serviços de prevenção, testagem e tratamento.12

As hepatites virais representam um grave problema de saúde pública devido a elevada taxa de prevalência, incidência e mortalidade.

Entre 1999 a 2019, o sistema de informação de Agravos de Notificação (Sinan) registou a ocorrência de 673.389 casos de hepatites virais no Brasil. Destes, 168.036 foram referentes a hepatite A (36,8%), 247.890 (36,8%) à hepatite B, 253.307 (37,6%) à hepatite C e 4.156 (0,6%) à hepatite D.5

Aspectos clínicos

A hepatite A é autolimitada, não evolui para doença crônica e tem na vacina a sua principal forma de controle.13 Seu período de incubação varia de 15 a 50 dias e é sintomática em 70% dos adultos.14,15 Caracteriza-se por início súbito de náusea, vômitos, anorexia, febre, mal-estar e dor abdominal, seguida por icterícia, colúria, acolia e prurido.16 Pessoas infectadas pelo HAV transmitem o vírus durante o período de incubação, que dura entre um e seis meses, persistindo até uma semana depois do início da icterícia.17

A hepatite B pode mostrar-se como doença aguda ou crônica. Na forma aguda, cerca de 70% dos casos apresentam a forma subclínica e 30% a forma ictérica, eventualmente um curso mais grave da doença.18,19 Na fase aguda, as manifestações clínicas como anorexia, astenia, mal-estar, náusea, icterícia, colúria e dor no quadrante superior direito do abdome são indistinguíveis de outras hepatites virais.20 Na sua forma crônica, a hepatite B é frequentemente assintomática, mas pode evoluir para insuficiência hepática crônica, cirrose e hepatocarcinoma.21

Sobre a infecção causada pelo HCV, observa-se que cerca de 50% a 85% das pessoas evoluem para a forma crônica da infecção, apresentando manifestações clínicas inespecíficas como cansaço, alterações do sono, náusea, diarreia, dor abdominal, anorexia, mialgia, artralgia, fraqueza, alterações comportamentais e perda de peso.22,23 Manifestações extra-hepáticas incluem crioglobulinemia, glomerulonefrite membrano-proliferativa, tireoidite autoimune, porfiria cutânea tarda, entre outras.24 Na ausência de eliminação viral espontânea e de tratamento, 20% dos casos de infecção pelo HCV evoluem para cirrose ao longo do tempo.25

A HDV pode cursar de maneira assintomática, oligossintomática e sintomática, dependendo em parte do momento de aquisição do vírus delta, se conjuntamente com o HBV ou em já portadores crônicos deste vírus. Se o vírus for adquirido como co-infecção, o prognóstico é beneigno geralmente, ocorrendo recuperação completa. Se ocorrer a superinfecção do vírus D em portadores do vírus B o prognóstico é mais grave, podendo haver dano hepático severo, ocasionando formas fuminantes de hepatite ou evolução rápida a cirrose.10

A HEV é geralmente assintomática, apresentando sintomas como cansaço, tontura, enjoo e/ou vômitos, febre, dor, abdominal, pele e olhos amarelados, urina escura e fezes claras. O período de incubação varia de 15 a 60 dias (com média de 40 dias).10

Diagnóstico

O diagnóstico das hepatites baseia-se na detecção de marcadores sorológicos (antígenos virais e anticorpos específicos) e molecular (ácido nucleico viral) no sangue, soro, plasma ou fluido oral da pessoa infectada por meios de imunoensaios ou de técnicas de biologia molecular.26,27,28 

Para o diagnóstico da hepatite A aguda, utiliza-se testes de imunoensaio que detectam anticorpos IgM anti-HAV no soro (até 6 meses após o início dos sintomas). A pesquisa por anticorpos IgG anti-HAV, seja por testes anti-HAV IgG ou anti-HAV total (IgM e IgG), auxilia na identificação de indivíduos não imunizados ou previamente infectados.

Para a hepatite B é utilizado teste laboratorial de imunoensaio ou teste rápido visando a detecção do antígeno de superfície HBV (HBsAg). Nos casos positivos, a complementação diagnóstica é feita com o anti-HBc total e, se disponível, com teste molecular (HBV-DNA). O HBeAg, anti-HBe e anti-HBs, juntos aos demais marcadores, auxiliam na avaliação da fase clínica e monitoramento evolutivo da infecção.21,25,27,28,30

Na hepatite B aguda, o HBsAg, HBeAg, anti-HBc IgM e o HBV-DNA são os primeiros marcadores a serem detectados. A presença do HBsAg é confirmação da infecção, podendo ser detectada de duas a 12 semanas após a exposição ao vírus. Sua negativação, quando a infecção é debelada, acontece semanas após a detecção, podendo se prolongar por até seis meses. O anti-HBc IgM evolui para negatividade após controle da infecção aguda, mas, em casos de reagudização da hepatite B, pode ser detectado.31

O HBeAg é marcador da intensa replicação viral e sua detecção relaciona-se à alta infecciosidade do HBV.31 Os anticorpos anti-HBc IgG também aparecem precocemente e normalmente persistem pelo resto da vida. Não servem para classificar forma clínica, pois todos os indivíduos que foram infectados, curados ou não, apresentam esse marcador. Tem uso epidemiológico, pois indica contato prévio com o vírus ou infecção vigente. A presença de anticorpos anti-HBe indica o início da recuperação, mas muitos indivíduos com forma crônica replicativa da doença podem apresentar esse marcador na ausência do HBeAg.32 O marcador anti-HBs surge durante a fase de convalescença, após o desaparecimento do HBsAg. Sua presença indica imunidade contra o HBV. Na ausência do anti-HBs, o anti-HBc total passa a ser o único marcador isolado da infecção prévia. Em indivíduos não expostos ao HBV (anti-HBc IgG negativos), a presença de anticorpos anti-HBs indica imunidade pela resposta vacinal contra a hepatite B.33

Na incapacidade de resolução da infecção aguda, alguns indivíduos tornam-se portadores crônicos do HBV. Nesses casos, a persistência do HBsAg por mais de seis meses sinaliza para a infecção crônica. Na hepatite B crônica, os marcadores HBsAg e HBV-DNA permanecem presentes e detectáveis. A avaliação do HBeAg e anti-HBe, junto aos demais marcadores, auxilia no monitoramento e avaliação da fase clínica da infecção.31,32

A testagem para hepatite B deve ser ofertada ou solicitada para todas as pessoas de maior vulnerabilidade ao agravo. Aquelas cujos resultados forem negativos devem ser encaminhadas para vacinação.25,29

Na infecção pelo HCV a maioria das pessoas infectadas é assintomática e o rastreamento é feito pela detecção de anticorpos anti-HCV utilizando teste de imunoensaio ou teste rápido. Nas pessoas com resultados reagentes, a complementação do diagnóstico é feita por teste molecular, no caso, a reação em cadeia da polimerase mediada por transcrição reversa (reverse transcriptase-polymerase chain reaction, RT-PCR) para detectar o RNA do HCV, confirmando a infecção ativa, aguda ou crônica.

Na infecção pelo HDV a suspeita é guiada por dados clínicos e epidemiológicos. A confirmação diagnóstica é laboratorial e realiza-se por meio dos marcadores sorológicos do HDV, posterior à realização dos exames de HBV.10

O diagnóstico clínico da hepatite E não permite diferenciar de outras formas de hepatites virais, apesar de ser possível a suspeita em casos com quadro clínico característico de área endêmicas. O diagnóstico específico pode ser feito pela detecção de anticorpos IgM contra HEV no sangue.

Tratamento

Não está disponível tratamento antiviral específico para a hepatite A, apenas medicamentos para alívio dos sintomas, os quais geralmente desaparecem dentro de dois meses.34

Durante a infecção aguda pelo HBV, apenas medidas de suporte são suficientes, visto que mais de 90% apresentam resolução espontânea. Se houver necessidade de tratamento, utilizam-se os inibidores de transcriptase reversa.35 No Brasil, a escolha é o fumarato de tenofovir desoproxila ou o entecavir.21 Medidas preventivas devem ser tomadas para todos os contatos expostos, indicando-se imunoglobulina e vacinação para aqueles soronegativos ou com sorologia desconhecida, segundo critérios estabelecidos.36

Após seis meses de persistência do HBsAg no sangue, a infecção pelo HBV é considerada crônica e deve ser avaliada clínica e virologicamente para decisão sobre necessidade de terapia medicamentosa. O tratamento da forma crônica da hepatite B tem como principal objetivo a supressão viral, evitando, com isso, a progressão da hepatopatia e o óbito. A negativação do HBsAg e soroconversão para o antiHBs (cura funcional) seria o resultado ideal, mas raramente alcançado. Não cumprindo esse objetivo, o aparecimento do anti-HBe, a redução da carga viral e a normalização das enzimas hepáticas passam a ser os desfechos alternativos.21,37

Objetivamente, a infecção pelo HCV pode ser curada utilizando-se tratamento antiviral de ação direta. Entretanto, por ser uma infecção assintomática na maioria dos casos, grande número de pessoas infectadas não são diagnosticadas e ainda existe limitação de acesso à terapia em alguns locais.38 Esse tratamento deve ser acompanhado por especialistas, visto sua complexidade.

As alternativas terapêuticas para o tratamento da infecção pelo HCV incorporadas ao SUS apresentam elevada efetividade terapêutica, confirmada por resposta virológica sustentada. Comparando-se situações clínicas semelhantes, todos os esquemas propostos apresentam efetividades também similares. Características que os diferenciam são as indicações para determinadas populações, a comodidade posológica, o controle mais acessível e o custo. A terapia tem como objetivo a resposta virológica sustentada, que significa negativação persistente do RNA viral após 12 a 24 semanas do término do tratamento.25

Para a hepatite D aguda não existe tratamento e a conduta é expectante. Já na hepatite crônica o tratamento é realizado em ambulatório especializado.

Para o tratamento da hepatite E, o repouso é necessário como uma medida importa pelo próprio paciente. A utilização de uma dieta pobre em gordura e rica em carboidratos é de uso popular, porém seu maior benefício é ser de melhor digestão ao paciente anorético.

Prevenção e controle

A prevenção da infecção pelo HAV depende da melhoria das condições sanitárias da população e da realização da vacinação. No entanto, em adultos, deve ser condiderada a transmissão sexual, indicando e incentivando práticas sexuais seguras. No entando, em adulto, deve ser considerada a transmissão sexual, indicando e incentivando práticas sexuais seguras.5

Para o controle da infecção pelo HBV, a melhor estratégia é a vacinação, que apresenta elevados percentuais de efetividade, os quais variam de acordo com a idade e a presença de comorbidades, por exemplo pessoas em hemodiálise e aquelas portadoras do HIV.

Para prevenção da HCV, as melhores estratégias são orientações e cuidados com pessoas usuárias de drogas ilícitas e aquelas que praticam atividade sexual sem proteção adequada. Outra forma de controle é a terapia antivirual de ação direta contra o vírus.

A melhor maneira de prevenir a hepatite D é realizar a prevenção contra a hepatite B, pois o vírus D necessita da presença do vírus B para contaminar uma pessoa.10

Para prevenção da hepatite E, as melhores estratégias são melhorias das condições de saneamento básico e medidas educacionais de higiene.10