É frequente que, quando nos perguntam o motivo da escolha da nossa profissão ou atividade, façamos alusão à vocação. Aparentemente, a concebemos como uma predestinação para fazer aquilo que escolhemos e confundimos ou sobrepondo sua definição com a de nossa preferência, nossas habilidades ou nossos interesses. O verbo latino vocare significa chamar. A vocação, então, é um chamado. Origens e implicações semelhantes têm as palavras convocar (chamar para uma tarefa ou empreitada), provocar (chamar para algum tipo de confronto) ou outras que aludem a chamados da imaginação ou da memória, como invocar ou evocar.
Quem nos chama através da vocação? Certamente, há algo de crença metafísica nesse sentir-se chamado (convocado), talvez por um “ser superior” para realizar uma missão que nos parece transcendente.
É muito comum que filhos de médicos se tornem médicos, que filhos de engenheiros se sintam inclinados pela matemática e pela física, e que filhos de atores queiram se dedicar à atuação. Existe um gene da vocação? Os chamados superiores têm uma agregação familiar? É difícil aceitar isso, a menos que tenhamos uma tendência muito pronunciada ao pensamento mágico ou místico.
É difícil sentir vocação pela música para quem não teve contato com ela desde pequeno ou que não é capaz de acertar uma simples nota com suas cordas vocais. Não é comum acreditarmos ter vocação para algo que não somos hábeis ou que conseguimos apenas após duros esforços.
Os médicos, sempre com uma inclinação, muito marcada em alguns, para a onipotência ou megalomania (que nos faz enfrentar quase continuamente, nada menos que a doença e a morte), frequentemente falam de nossa vocação, nossa missão e nosso apostolado. Se fôssemos um pouco mais humildes e analisássemos as verdadeiras motivações pelas quais escolhemos a medicina, reconheceríamos que houve alguma figura idealizada da nossa infância (nosso pai ou algum outro ser significativo para nós) a quem quisemos nos parecer ou nos fizeram amar a atenção de enfermos porque alguém nos mostrou sua importância com alguma conotação de transcendência. É quase impossível amar o que não se conhece; é evidente que não podemos desenvolver interesse ou afinidade por atividades que nos são totalmente alheias.
Um prestigiado colega costuma relatar sua escolha pela medicina em seus anos de infância, com uma boa dose de humor, mas deixando transparecer um mecanismo de pensamento complexo e interessante. Seu pai era uma figura revestida de grande autoridade e severidade. Era habitual que todos o consultassem e que sua palavra fosse lei não apenas para seus familiares diretos, mas também para outros que tinham com ele uma relação de subordinção laboral, intelectual ou psicológica. Certa vez, diante de uma leve enfermidade, um médico foi à casa atender a esse pai de perfis majestosos na imaginação infantil de seu filho. O menino logo percebeu que o médico dava orientações e recomendações, e até repreendia o paciente pela falta de disciplina em cuidar de sua saúde. O pai assentia em silêncio diante do discurso do médico, com verdadeira submissão. Naquele dia – nos dizia há algum tempo, entre risos, o colega mencionado – eu disse a mim mesmo: Eu quero ser médico.
Quando a inclinação não é muito definida ao terminar o ensino secundário, época que encontra os jovens em plena adolescência, ou seja, em um período de indefinição, ambivalência e mudança, costuma-se recorrer a testes de orientação vocacional. É algo como tentar descobrir se o garoto ou a garota em questão foi “chamado” para algo, ou, em última análise, a que foi chamado. Os resultados costumam ser pobres e decepcionantes para o indeciso, porque não acertam mais do que dizer, de acordo com as preferências expressas, para que coisas pode ser apto. Resposta enganosa, se é que há, já que um jovem de inteligência média costuma ter aptidão para quase qualquer coisa que abrace com verdadeiras ganas.
A palavra vocação é geralmente exagerada e seu significado é sobreactuado com o desejo de ser valorizado pelos semelhantes, talvez de maneira exagerada.
Com um critério de realidade e uma boa dose de humildade, seria bom aceitar que ninguém nem nada nos “chama” para deixar uma marca na história da humanidade, exceto os exemplos que desde muito cedo nos mostraram condições ou habilidades de certas figuras fundamentais para nós que, uma vez adultos, decidimos imitar. Em outros casos, por razões diversas, essas figuras nos marcaram de tal forma que buscamos um campo distinto de desenvolvimento profissional com o explícito ou inconfessado desejo de nos diferenciarmos delas.
Autor: Prof. Dr. Alcides Greca |
![]() | Médico especialista em Clínica Médica. Ex-Professor Titular da 1ª Cátedra de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nacional de Rosario |