Tradições no parto

Práticas do parto na américa latina no contexto da escravidão

Quando os saberes práticos das parteiras enfrentam o conhecimento teórico dos médicos

Autor/a: Lorena Féres da Silva Telles e Tânia Salgado Pimenta

Fuente: Revista Estudos Feministas, n. 32, v. 1, 2024. DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9584-2024v32n198149 Mulheres negras, parteiras e parturientes

Até meados do século XIX, mulheres de todos os grupos étinico-raciais e sociais recorriam aos saberes práticos de uma parteira da vizinhança, sobretudo quando se deparavam com complicações no desenrolar dos nascimentos. Naquele período, a presença de médicos e cirurgiões nos partos domiciliares era rara, e apenas excepcionalmente eram requisitados, em partos complicados, em particular para atenderem mulheres brancas das elites e camadas médias escravistas.

Os saberes práticos desses profissionais não gozavam de legitimidade social e não inspiravam a procura por grande parte das mulheres. No entanto, essas optavam pela assistência de parteiras, cuja hegemonia e prestígio passaram a ser questionados pela medicina acadêmica. Diversos fatores contextualizavam os debates em torno das parteiras nas américas, como tensões acerca de raça, gênero e trabalho. Mulheres africanas e suas descendentes frequentemente monopolizaram a seara dos partos, seja no caribe, na América do Sul e nos Estados Unidos.

No entanto, na primeira metade do século XIX, o ingresso dos médicos nos partos foi acompanhado pela emergência de práticas que tentavam regular e controlar os praticantes da medicina, dirigindo discursos às parteiras marcados de afirmações preconceituosas e difamatórias acerca da natureza informal de seus conhecimentos. No entanto, independente das afirmações, essas eram reconhecidas como figuras de autoridade e confiança pela sociedade.

No Brasil, o processo de institucionalização da medicina começou nas primeiras décadas do século XIX, com a criação das Escolas de Cirurgia e Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro. Replicando os padrões de conhecimento vigentes nas universidades europeias, a reforma do ensino médico instituiu os cursos de medicina, farmácia e para parteiras, visando restringir a prática dos partos a mulheres brancas e letradas. No entanto, ao longo da segunda metade do século, proprietários(as) de mulheres escravizadas solicitavam a assistência médica apenas como último recurso diante do agravamento de complicações do parto.

A grande parte dos partos de mulheres cativas e livres desenrolava-se nos domicílios, sob assistência das parteiras. Pesquisas apontaram que o universo das curas e dos partos foi um importante campo de atuação e ofício de mulheres indígenas, africanas e suas descendentes escravizadas, libertas e livres, ou portuguesas e descendentes brancas empobrecidas. Designadas parteiras e “comadres”, elas detinham os saberes informais sobre o corpo feminino, ancorados na experiência prática e na tradição oral.

Cenário da assistência ao parto no século XIX

No dia 16 de agosto de 1845, Inácia sentiu os primeiros incômodos de trabalho de parto. Uma mulher cativa preparou o leito e assistia o parto. Essa informou ao dono da casa, o Sr. Vieira da Motta, que a expulsão da criança operou-se com tal precipitação, que a mesma foi lançada repentinamente e apanhada por ela. De acordo com o caso clínico, ao nascimento súbito da criança sucedia “a saída de enorme quantidade de águas”, “demorando-se a expulsão das secundinas [placenta], e conservando-se ainda o útero muito volumoso”. Após saber todas as informações, o sr. Vieira tomou a iniciativa de procurar um médico. Este, depois de examinar seu ventre, reconhecia a existência de outro bebê. De acordo com sua narrativa, ele optava por deixar Inácia em trabalho de parto, sob os prováveis cuidados da outra cativa, prometendo retornar pelas nove horas da noite.

De acordo com o exposto, Inácia era assistida por outra mulher, que além de preparar o leito e aparar o primeiro bebê, reconhecia o desenrolar do parto, sinalizando a quantidade atípica de águas, a demora na expulsão da placenta e o útero volumoso. O registro do médico José Pereira Rego, neste caso, indicou que as parturientes poderiam ser assistidas por outras mulheres, sobretudo na primeira metade do século XIX.

Com o estabelecimento da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, diversas instituições foram transferidas ou criadas. Neste contexto, originou-se os cargos de físico-mor e cirurgião-mor e o regulamento da Fisicatura-mor, fundada com a finalidade de regulamentar e fiscalizar os praticantes das atividades relacionadas à saúde. A partir de então, as parteiras deveriam obter licenças que as autorizassem a exercer a profissão, sendo necessária a apresentação de um atestado assinado por um cirurgião ou outra parteira licenciada, que certificasse a experiência da candidata, para que ela pudesse fazer um exame teórico com dois cirurgiões mediante o pagamento de uma taxa.

No entanto, apenas 120 mulheres oficializaram suas atividades. Esse número não correspondia ao número de parteiras atuantes na cidade e sinalizou o desinteresse em formalizar seu status, visto que já eram reconhecidas na sociedade. Dificuldades em arcarem com o pagamento das taxas para abertura e andamento do processo de oficialização também poderiam desestimular essa oficialização.

A partir de 1820, houve uma imigração de francesas no país, essas constituíam um novo perfil de parteiras, muitas formadas em escolas de medicina segundo os princípios da obstetrícia. Essas atendiam, preferencialmente, mulheres brancas de camadas escravistas mais ricas. No entanto, elas entendiam que as “cablocas, portuguesas e negras velhas monopolizavam o exercício dos partos”, até então “não contestado, curavam as moléstias do útero, benziam de quebrantos, tratavam de espinhela caída (gastroenterite): eram apelidadas como em muitas outras partes comadres”.

Maria Josephine Mathilde Durocher, a primeira parteira a se formar no curso de partos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, indicou que as parteiras tratavam de “moléstias médicas ou cirúrgicas com certas rezas, palavras mágicas acompanhadas de mezinhas, confeccionadas por elas”. Brasileiras, africanas e portuguesas diferenciavam-se de acordo com seus trajes: “as Brasileiras trajavam mantilhas ou baeta, as Africanas baeta ou pano da costa, as Portuguesas, saia, capote e lenço branco à cabeça”. Durocher representava as práticas das parteiras a partir de um viés preconceituoso:

Eram completamente analfabéticas [sic], pertenciam à última classe da sociedade, pela maior parte ex-meretrizes [...] e levavam debaixo da mantilha, capote ou baeta, cartas, presentes, filtros, feitiçarias de simpatia ou repulsão, de ventura ou de desgraça: provocavam o aborto, cometiam infanticídios e abandonavam nas ruas ou estradas os recém-nascidos.

Em 1835, Durocher era convidada para comparecer no juizado de paz, com a finalidade de examinar uma moça “que se dizia ter sido deflorada”. No dia e hora marcados, a francesa surpreendeu-se por não encontrar o médico, mas sim Tereza, uma parteira da freguesia. Durocher questionou o juiz sobre chamá-la em vez de um professor de medicina, no entanto, o mesmo respondeu negativamente: “visto como a lei dizia que, na falta de um médico ou cirurgião, serviriam duas parteiras, e, na falta destas, qualquer matrona”.

Nota-se que, anteriormente e mesmo depois da lei de 1832, que veio restringir às formadas no curso de partos o exercício legal desta profissão, mulheres negras alcançavam reconhecimento e prestígio entre a população. Mas como elas aprendiam esse ofício? De acordo com alguns documentos, a maioria aprendia com Sebastiana Maria do Bom Sucesso, que passou seus conhecimentos para diversas mulheres.

Sendo assim, os aprendizados constituíam-se a partir de conhecimentos fundados na prática, junto a outras parteiras.

Assim, a partir de 1832, a despeito da fundação da Faculdade de Medicina e da restrição legal dos partos às mulheres formadas, parteiras negras e libertas como Gertrudes Maria, Sebastiana, Tereza, e muitas outras, continuaram obtendo clientela entre livres, libertas e escravizadas na cidade, e mesmo conquistando reconhecimento entre os funcionários do Estado.

Ao longo da segunda metade do século XIX, os médicos, em busca de legitimidade e clientela, passaram a dirigir às parteiras um discurso preconceituoso, racista e difamatório, representando, nas teses de medicina e jornais diários, estas mulheres dos extratos populares como mulheres supersticiosas, infanticidas e aborteiras. Competindo com parteiras, mezinheiras e curandeiras, os médicos forjaram as figuras do “charlatão” e da “parteira ignorante”, muitas das quais africanas, indígenas e descendentes, que passaram a ser hostilizadas, em oposição ao médico, portador da ciência, e à parteira branca e acadêmica.

Ao longo da segunda metade do século XIX, os discursos médicos racializados e as campanhas contra as parteiras brasileiras e africanas negras penetraram em parte das elites escravistas que se europeizavam e que passaram a preteri-las, solicitando a assistência de parteiras brancas. No entanto, mulheres escravizadas e libertas seguiram, em grande medida, sendo atendidas por parteiras atuantes nas vizinhanças.

Práticas e contextos dos partos

Parteiras, escravistas e mulheres escravizadas compartilhavam do desejo de que tanto as mães quanto os bebês gozassem de boa saúde e sobrevivessem. No entanto, as mulheres africanas e suas descendentes esperavam vivenciar o nascimento de seus bebês de acordo com o que consideravam apropriado, visto que os partos eram eventos espiritualmente carregados e potencialmente perigosos. Além disso, haviam diferenças inconciliáveis entre as concepções, interesses e anseios das mulheres afrodescendentes, e as noções do que constituíam práticas apropriadas para mulheres negras e médicos brancos.

Historiadores acreditam que as parteiras negras exerceram um papel fundamental na criação de significados alternativos para os nascimentos entre as mulheres cativas, em confronto com a objetificação de seus bebês por parte da classe senhorial, esforçando-se em situar o recém-nascido dentro de um contexto de parentesco e proteção, mediando os eventos espiritualmente carregados do nascimento e da morte dos bebês.

Para jovens parturientes de primeiro filho ou mães experimentadas, seria desejável contar com mulheres de sua confiança no momento do parto, que fizessem parte de suas redes de solidariedade. No entanto, no cenário em que vigoravam a pequena e a média propriedade urbana, as parteiras eram, em sua maioria, mulheres libertas e livres empobrecidas, solicitadas pelos senhores e por eles remuneradas, podendo, também, agir contrariamente aos interesses das parturientes cativas. Os domicílios senhoriais, os médicos e as parteiras europeias brancas, em particular as formadas de acordo com os princípios da obstetrícia acadêmica, provavelmente não ofereciam às africanas e a suas descendentes o senso de segurança física, emocional e espiritual durante os partos e depois dele.

Assim, é possível conjecturar que mulheres negras, africanas e descendentes desejassem a assistência de parteiras com as quais pudessem partilhar das concepções e práticas do que seria apropriado.

Um aspecto importante a se destacar é que as mulheres africanas poderiam ter experimentado ou assistido partos em suas sociedades de origem. Sendo assim, por mais que as parteiras tenham aprendido seus conhecimentos com familiares ou com outras parteiras, essas tiveram contato com as práticas e rituais de nascimento inspirado nas suas tradições.

No entanto, elas também se adaptaram às expectativas sociais e culturais de mulheres brancas e indígenas, atuando com maior liberdade na sociedade. Assim, as parteiras africanas, quando próximas aos brancos, poderiam modelar suas formas de atuação com as escravizadas de acordo com as expectativas do que seria o parto apropriado pelas mulheres brancas, inibindo, possivelmente, determinadas práticas.

Ademais, as parteiras utilizavam de vários expedientes para solucionar complicações nos partos, como massagens e fricções, manobras externas e internas, visando romper o saco amniótico, reposicionar ou extrair com as mãos o feto, além do uso de sopros na garrafa e de infusão de ervas para acelerar o trabalho de parto. Ademais, utilizavam o centeio espigado, usado também por médicos, a fim de acelerar as contrações uterinas, sustar hemorragias e como abortivo. Alguns relatos demonstraram que os partos não ocorriam sob lençóis, as mulheres davam à luz em outras posições e as parteiras a ajudavam sustentando os joelhos e as cadeiras.

O uso de fingas no cinteiro para evitar maus olhos, feitas, particularmente, de chifres, considerados os melhores amuletos para o mau-olhado pela cultura africana. A profusão de amuletos sinaliza as reelaborações do culto aos antepassados. Assim, mulheres negras, curandeiras e parteiras africanas e descendentes detinham saberes e poderes que poderiam proteger a parturiente e os bebês dos malefícios.

O contato das mulheres africanas com as crenças do cristianismo, como a devoção às santas e aos santos católicos, teria fornecido novos caminhos de interpretação e de enfrentamento aos infortúnios no parto. Assim, rituais foram apropriados e africanizados por parteiras e parturientes negras africanas e descendentes, tendo assumido um significado particular para a proteção.

A devoção a santos católicos, o culto aos espíritos e o uso de amuletos investidos de poderes de proteção teriam constituído um arsenal importante contra os infortúnios do parto.

Imagens de santas católicas, como Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Parto, representadas segurando as mãos de uma criança, referem-se ao bom sucesso no parto, à sobrevivência das mães e dos bebês.

Assim, nos nascimentos entre mulheres africanas e descendentes, parteiras e parturientes, que transcorriam nos domicílios dos brancos, estiveram em jogo a liberdade e a autonomia de posições no processo de dar à luz, a expressão ou o silenciamento das manifestações de dor durante o parto, mas também a prática de rezas e rituais de nascimento e de enfrentamento aos feitiços e à morte dos bebês.