Doença complexa e multifatorial

Dermatite atópica grave

Resumo do guia prático de tratamento da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia e Sociedade Brasileira de Pediatria

Autor/a: Prado E, Pastorino AC, Harari DK, Mello MC, Chong-Neto H, Carvalho VO, et al.

Fuente: Sociedade Brasileira de Pediatria. Arq Asma Alerg Imunol., v.6, ed. 4 p 432-467, 2022 Dermatite atópica grave: guia prático de tratamento da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia e Sociedade Brasileira de Pediatria

Introdução

A dermatite atópica (DA) é uma doença cutânea inflamatória, crônica, comum, complexa e de etiologia multifatorial, que se manifesta clinicamente com prurido, lesões recorrentes do tipo eczema e xerose e que pode evoluir para liquenificação. A distribuição e morfologia das lesões são variáveis, com início em geral antes dos dois anos, e os pacientes apresentam antecedentes familiares e pessoais de atopia.

Na ausência de um teste laboratorial diagnóstico de certeza e a grande variabilidade de sinais e sintomas presentes nas diferentes regiões geográficas e com a idade, o diagnóstico da DA é baseado na presença e no padrão de distribuição das lesões associados aos achados clínicos e à história pessoal e familiar de atopia.

A DA, especialmente nas formas moderadas a graves, tem grande impacto da qualidade de vida do paciente e de seus familiares. Está associada a várias comorbidades atópicas (rinite alérgica, asma, alergia alimentar e esofagite eosinofílica) e a comorbidades não atópicas, com destaque para a saúde mental, com frequente associação à depressão e ansiedade. Nos últimos anos, foram disponibilizadas terapias sistêmicas inovadoras, incluindo imunobiológicos e pequenas moléculas, que atuam de forma seletiva na inibição de citocinas que participam do processo inflamatório da DA. Essas novas classes de fármacos apresentam eficácia e segurança superiores aos imunossupressores sistêmicos e representam uma nova era no tratamento da DA grave.

Aspectos clínicos e fenótipos

Em todos os pacientes com DA a lesão característica é o eczema, e a presença do prurido é achado obrigatório. Entretanto, as manifestações clínicas de pacientes com DA grave são expressões ampliadas do quadro clínico, e os sinais e sintomas se agravam imensamente. Ao longo da vida a apresentação clínica é variável, e pode ser dividida em quatro seguimentos:

  • Lactante (0-2 anos): As lesões se iniciam cerca de dois meses após nascimento e acometem face (bochechas), couro cabeludo, tronco e superfície extensora dos membros. Nas lesões agudas há vesículas, exsudação, crostas e eritema. A xerose é frequente.
  • Dermatite da criança (2-12 anos): A superfície flexora passa a ser mais acometida, com destaque às fossas poplítea e cubital, no entanto, há possibilidade para lesões nas mãos e pulsos. Há um número maior de lesões subagudas, ressecadas e espessadas. Lesões crônicas com algum grau de liquenificação também podem ser observadas.
  • Dermatite do adulto (12-60 anos): As lesões se distribuem de maneira mais ampla. Além das flexuras pode haver lesões na cabeça, pescoço e mãos. Xerose é a complicação mais comum em pacientes com DA, e a persistência da pele seca pode prejudicar a função de barreira da pele e alterar a sua microbiota. As lesões são crônicas e liquenificadas, e pacientes podem apresentar surtos de reagudização, além de maior risco de infecções virais.
  • Dermatite do idoso (> 60 anos): É caracterizado principalmente por lesões eczematosas extensas, e alguns pacientes podem apresentar eritrodermia com forte componente pruriginoso. Ocasionalmente as lesões poupam as áreas de flexão.

Com base a idade de início da lesão, a história natural pode evoluir de diversas maneiras:

  • Início muito precoce (de 3 meses a 2 anos): Uma parcela substancial dos pacientes pode entrar em remissão completa antes dos 2 anos de idade, mas cerca de 40%, continuam a ter a doença por um longo período de tempo e podem representar a população com maior risco para a marcha alérgica.
  • Início precoce (entre 2 a 6 anos): apresentam alto risco de outras doenças alérgicas.
  • Início na infância (entre 6 e 14 anos).
  • Início na adolescência (entre 14 e 18 anos).
  • Início adulto (entre 20 e 60 anos): caracterizado principalmente por pacientes do sexo feminino, com um fenótipo clínico bastante leve e espectro de sensibilização, geralmente acompanhado por níveis séricos normais de IgE.
  • Início muito tardio (>60 anos).

Além disso, DA pode ser definida como extrínseca ou intrínseca. No primeiro caso, é caracterizada por níveis séricos elevados de IgE total com mutação do gene das filagrinas em 30% aproximadamente, presença de outras atopias, inclusive alergia alimentar, e possível associação com hiper linearidade palmar. Enquanto isso, a segunda é mais comum em adultos, principalmente em mulheres, e há possibilidade de associação com dermatite de contato, em especial ao níquel.

A doença pode, também, ser classificada pela gravidade (leve, moderada e grave), etnia (subtipos euro americanos ou asiáticos) ou por apresentação clínica.

Fisiopatogenia

São muitos os conhecimentos atuais que envolvem a fisiopatogenia da DA, mas os mais relevantes parecem ser aqueles envolvendo as desordens genéticas, barreira cutânea alterada, desregulação imunológica e alterações do microbioma cutâneo.

Mecanismos como desorganização celular, diminuição de proteínas como a filagrina e a claudina são importantes para explicar como as alterações na barreira cutânea comprometem a integridade da pele, possibilitando a penetração de alérgenos e patógenos. Sendo assim, o microbioma cutâneo com baixa diversidade microbiana e a deficiência de peptídeos antimicrobianos contribuem para as infecções cutâneas, principalmente estafilocócicas.

A barreira cutânea lesada proporciona a liberação de citocinas como a TSLP (linfopoietina do estroma tímico), interleucina (IL)-33 e IL-25, consideradas alarminas e que provocam desregulação imunológica no nível da derme.

A primeira ativa uma grande variedade de células como as linfoides inatas do tipo 2 (ILC2) e Th2. As respostas Th1, Th2, Th17 e Th22 são as mais importantes na fisiopatologia da DA por produzirem e liberarem substâncias capazes de ativar outras células ou que apresentam atividades pró-inflamatórias como ações principais. Células Th1 são mais participantes na evolução da doença para a cronicidade e liberam interferon-gama. As células Th2, Th17, Th22 e ILC2 são as principais responsáveis pelo início do processo inflamatório.

A IL-25 estimula células ILC2, Th2, eosinófilos e provoca maior liberação de IL-31. Essa última é uma citocina muito importante no processo de prurido cutâneo, pois ativa terminais nervosos com liberação de neurotransmissores como os neuropeptídeos (substância P e CGRP).

A IL-33 estimula mastócitos a liberar histamina, ativa eosinófilos e células ILC2, aumentando os níveis de IL-4 e IL-13 com maior produção de IgE e diminuição dos níveis de filagrina. O processo inflamatório que se estabelece por ação dessas células e citocinas diminui a expressão de IL-10 liberada de linfócitos B.

Outro fator que potencializa o processo inflamatório é a infecção bacteriana. Enteroxinas estafilocócicas, como a do tipo B (SEB), atuam como superantígenos e aumentam a ação de linfócitos com maior liberação de citocinas pró-inflamatórias.

Fatores desencadeantes e agravantes

A fisiopatologia da DA depende da interação entre predisposição genética, disfunção imunológica e fatores desencadeantes ambientais.

Além da adesão ao tratamento, a exposição a fatores ambientais, incluindo alérgenos e estímulos no local de trabalho e no domicílio, fatores decorrentes do estilo de vida e temperatura, além da desregulação da fisiologia da pele, estão associados à manutenção e exacerbação da DA. Uma sensação de calor, sudorese, fibras de lã, estresse psicológico, comida, ingestão de álcool e o resfriado comum são considerados particularmente importantes como fatores de indução e exacerbação do prurido na DA. Esses foram resumidos na tabela 1.

Clima e temperaturaBaixa umidade, baixa exposição aos raios UV e baixa temperatura foram associados à maior prevalência de DA.
Poluentes domiciliaresFumaça de tabaco, produtos de combustão (fogões e lareiras), materiais de construção, fontes biológicas e produtos de limpeza foram associados à recorrência da DA.
Poluentes atmosféricosRelação entre exposição à poluição do ar com a prevalência da DA.
Dieta/Antígenos alimentaresAproximadamente 30% das crianças com DA moderada a grave sofrem de alergia alimentar (AA).
Aero alérgenosAero alérgenos podem provocar lesões cutâneas eczematosas em pacientes sensibilizados com DA, que pode ser explicado pelo aumento da permeabilidade da pele para alérgenos inalantes em pacientes com defeitos da barreira cutânea.
SudoreseDistúrbios na transpiração, bem como excesso de suor remanescente na superfície da pele exposta a altas temperaturas e umidade podem piorar os sintomas da DA.

Tabela 1: Fatores desencadeantes da DA.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da DA em crianças e adultos é amplo e inclui doenças primariamente dermatológicas, até mesmo outras que podem se manifestar com lesões cutâneas. Estes devem ser considerados não apenas quando um paciente apresenta pela primeira vez uma erupção cutânea eczematosa, mas também quando um paciente diagnosticado com DA não responde à terapia apropriada.

Os principais diagnósticos diferenciais da DA e suas características morfológicas foram descritas na tabela 2.

Dermatite de contato alérgicaA característica da lesão se assemelha muito à DA, sendo por vezes impossível diferenciá-las apenas clinicamente. Os alérgenos mais comuns em crianças e adolescentes são os metais, fragrâncias, conservantes e corantes de coloração.
Dermatite seborreicaA dermatite seborreica infantil geralmente começa nos primeiros três meses de vida, ou seja, antes da idade típica de início da DA. Quase sempre envolve a área da fralda, face e couro cabeludo. Em comparação com a dermatite atópica, as lesões tendem a ser menos inflamadas e as escamas mais gordurosas, podendo durar alguns meses, mas não ultrapassam os 12 meses de idade.
PsoríaseÉ uma dermatose crônica caracterizada mais frequentemente por lesões em placas e espessamento cutâneo, nitidamente demarcadas com eritema e com a presença de escamas prateadas nas regiões dos cotovelos,
joelhos e couro cabeludo. Pode haver envolvimento ungueal e articular (artrite psoriática).
EscabioseO diagnóstico diferencial com DA inclui tanto a característica pruriginosa da infestação pelo Sarcoptes scabiei quanto às lesões cutâneas decorrentes deste prurido, com a presença de pápulas eritematosas e escoriações, predominando nas áreas interdigitais, áreas flexurais do punho, pés e tornozelos, o que poderia caracterizar um eczema atípico.
Ictiose vulgarO quadro clínico típico inclui pele seca com escamas finas e brancas, muitas vezes sem eritema. Prurido e lesões eczematosas podem aparecer, tornando difícil o diagnóstico diferencial com DA.
Síndrome de Netherton

Em crianças, a doença é caracterizada por uma dermatite distinta, ictiose linear circunflexa, onde as lesões cutâneas são disseminadas de forma linear serpiginosa ou circinada. As lesões são pruriginosas e muitas evoluem para placas eczematosas e liquenificação nas dobras. A dermatite pode ser de difícil distinção da DA, pois as crianças geralmente apresentam níveis elevados de IgE sérica e alergias alimentares.

Síndromes de Hiper-IgE (HIES)São erros inatos da imunidade (EII) raros (formas autossômicas dominante ou recessiva) e caracterizadas por eczema grave, infecções recorrentes da pele (S. aureus) e muitas vezes pneumonias (com formação de pneumatoceles) e níveis séricos de IgE muito altos (> 2000 UI/mL).

Tabela 2: Principais diagnósticos diferenciais da DA.

Tratamento

Considerando a cronicidade da DA e os seus diferentes níveis de gravidade, os objetivos do tratamento são os seguintes: (a) reduzir a extensão e a gravidade das lesões; (b) reduzir o prurido e melhorar a qualidade do sono; (c) manter normais as atividades diárias; (d) melhorar a qualidade de vida; (e) maximizar os períodos livres de doença; (f) prevenir as complicações infecciosas; e (g) evitar/minimizar eventos adversos do tratamento.

  • Cuidados gerais

Nos pacientes com DA leve esses objetivos anteriormente citados são alcançados apenas com a terapia tópica, diferente dos pacientes com DA moderada a grave, cujo tratamento é desafiador. Os princípios gerais incluem melhora da barreira cutânea, eliminação dos fatores desencadeantes, educação e participação ativas dos pacientes e familiares, e tratamento das lesões inflamatórias.

Os hidratantes, quando aplicados regularmente, melhoram a função da barreira cutânea, aumentam a hidratação, reduzem a xerose, o prurido e a inflamação, diminuindo a necessidade do uso de agentes anti-inflamatórios.

O hidratante ideal deve conter poucos ingredientes, com conservantes bem tolerados e ser livre de fragrâncias e sensibilizantes para evitar reações alérgicas cutâneas. Muitas vezes é necessário testar diferentes produtos até encontrar o que melhore a hidratação cutânea, não provoque ardência e seja da preferência do paciente. As guias recomendaram que deve ser aplicado duas a três vezes ao dia, em especial com a pele ainda úmida nos primeiros três minutos após o banho, nas áreas da pele com e sem lesões.

Tomar banho diariamente não está associado à piora clínica. Esse reduz os irritantes, bactérias e crostas da pele. Para evitar o ressecamento cutâneo, é indicado o uso de água morna.

É necessário identificar possíveis fatores desencadeadores da DA, como irritantes não específicos (suor, xampu e sabonete), alergia alimentar, aero alérgenos e bactérias. Quando identificados, o ideal é removê-los para evitar a cronicidade da doença.

Por ser uma doença crônica e que requer acompanhamento de longo prazo, pacientes e familiares precisam ser educados no intuito de compreender o curso da doença, assim como abordar e prevenir as crises, melhorando a aderência ao tratamento e a qualidade de vida.

A DA tem impacto significante sobre a qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares. Fatores de estresse e emocionais podem exacerbar a doença. Aconselhamento psicossomático, psicoterapia, técnicas de terapia comportamental e/ou técnicas de relaxamento podem beneficiar no manejo do paciente.

  • Fototerapia

Mostra-se eficaz por alterar a cascata de eventos biológicos e que resultam na supressão do sistema imunológico ligado às células T da pele. Especificamente na DA, provoca supressão da resposta dos linfócitos Th2, Th22 e Th1, melhorando a barreira cutânea. Além disso, reduz a colonização por Staphylococcus aureus, diminui o número de infecções e promove redução da produção de toxinas por essa bactéria.

É recomendada como adjuvante nas falhas dos tratamentos tópicos, antes da utilização de medicações sistêmicas imunossupressoras.

Um dos maiores problemas dessa modalidade terapêutica é o custo e principalmente a disponibilidade de equipamentos e médicos capacitados para a sua realização. Em algumas regiões do Brasil não é uma opção viável, pois os equipamentos se encontram em grandes centros ou capitais e a necessidade de sessões frequentes impossibilita a sua aderência, principalmente de pacientes de cidades distantes destes centros. Outra preocupação ainda é a possibilidade de aumento de risco de câncer de pele associado à exposição à fototerapia, principalmente em pacientes pediátricos.

  • Tratamento farmacológico

Para o controle da DA é necessária uma abordagem adaptada para cada fase. O plano terapêutico deve ser elaborado em decisão compartilhada com o paciente e sua família. Deve-se incluir no plano terapêutico o controle de curto, médio e longo prazos, com estratégias para as crises agudas.

> Tratamento tópico

A terapia tópica é necessária para todos os pacientes, independentemente da intensidade da DA. Nas formas graves, deve ser associada aos medicamentos sistêmicos.

Corticosteroides tópicos (CET) e inibidores tópicos da calcineurina (ITC) são indicados como terapia de base. Nos últimos anos novas substâncias tópicas foram disponíveis ou estão em fase de estudo. São terapias emergentes os inibidores tópicos da fosfodiesterase-4 e inibidores tópicos da Janus kinase, no entanto, ainda não estão disponíveis no Brasil.

>Tratamento sistêmico

Segundo as recomendações de diretrizes nacionais e internacionais, deve ser reservada para a DA grave, ou seja, pacientes que não obtêm controle adequado da doença com a terapia tópica otimizada e a fototerapia. Pacientes com formas moderadas de DA, mas com grande impacto na qualidade de vida, também são candidatos à terapia sistêmica.

Antes de iniciar a terapia sistêmica é importante rever o diagnóstico diferencial, excluindo condições graves que mimetizam a DA, como linfoma de células T e erros inatos da imunidade; avaliar a adesão ao tratamento; investigar a participação de fatores desencadeantes e agravantes, como exposição a alérgenos (inalantes, alimentos, contactantes), irritantes e aspectos psicológicos.

A escolha da terapia deve ser personalizada e participativa, levando em conta a faixa etária, comorbidades, perfil de eventos adversos, necessidade de monitoramento laboratorial, preferências do paciente (medicação oral x injetável) e o cenário local de acesso aos diversos medicamentos. Dentre os tratamentos, pode-se citar a antibioticoterapia, imunossupressores, corticoides sistêmicos e os imunobiológicos.