“A escrita é uma larga introspecção, é uma viagem até as cavernas mais obscuras da consciência, uma lenta meditação.
Escrevo às apalpadelas no silêncio e pelo caminho descubro partículas de verdade, pequenos cristais que cabem na palma da mão e justificam a minha passagem por este mundo.”
- Isabel Allende
Cada vez que isso acontece aquela pergunta me invade novamente: como a gente esmaga? Nós nos batemos?
Procurei saber na hora, pois por necessidade, estava muito cansada e precisava pensar urgentemente em outra coisa, claro, como queria negar ou obviamente.
Você também pode esperar alguns dias, tentar tornar essa escrita muito mais prolixa, reservar algum tempo para revisar os dados frios de seu histórico médico. Mas pensando nisso, quero apenas deixar o papel ou o que está na minha memória – e não no meu coração – da maré e do privilégio que encontramos nesta vida.
Não sei exatamente quando nos encontramos, certamente há vários meses, mas provavelmente há menos de um ano. Doença, recaída, fora de tratamento curativo, um tumor que vem como um “Alien” para ter vida própria e crescer e crescer. Crescendo bem ali no pescoço, aos poucos, aos poucos atrapalhando a alimentação, ou sono, a fala e obviamente, a respiração.
Poderia ter sido pior? E sim, sempre pode ser pior. Mas foi simplesmente horrível.
Felizmente – se há algo nesta história que possa ser chamado de sorte – tivemos tempo. Neste caso uma passagem, por vezes maravilhosa e por vezes ameaçadora, mas que nos permitiu conhecer-nos, criar laços, com respeito, mas com muito amor, sempre.
As visitas quase semanais ao hospital para ver como você estava com a equipe que o atendeu foi uma consulta ambígua, pois poderia carregar a tristeza de ver você piorar, mas também foi um encontro de abraços, sorrisos, beijos e diálogos; às vezes monólogos da nossa parte. Mas conseguimos criar "aquele espaço sagrado", geralmente sozinho - sem a família amorosa e acompanhante -, no qual você soube ter confiança suficiente para compartilhar (tanto quanto quisesse) seus gostos pela pilcha, a cor lilás e o rosa, o glitter, nas unhas, no rosto, na bolsa, nas sandálias... O que dizem: cada encontro foi um encontro com uma estrela. E foi assim que vivemos.
E cara, como pudemos compartilhar conversas, às vezes mais longas, outras vezes mais curtas, sobre seus irmãos adolescentes, tão diferentes entre si e o cuidado que eles tiveram com vocês - cada um à sua maneira -, o amor que vocês tinham por cada um deles e como seus professores estão preocupados, mas atenciosos e seus colegas sempre levando você em consideração para te integrar, para te homenagear, para novíssimas jaquetas de pós-graduação.
E suas preocupações variaram ao longo do tempo e cada um teve seu espaço para sentar e compartilhar opiniões e reflexões com você, com a família e com a equipe. Há alguns meses sua autoexigência e preocupação ganhavam peso, quando você estava ficando cada vez mais magro, seus medos eram de usar o cateter ou de que – devido ao crescimento excessivo do tumor – você teria que fazer uma traqueotomia. Os medos também apareciam à noite, aqueles que você aliviava do seu jeito, com uma garrafa de água e uma maçã... lembra, linda? Quantas palavras trocamos com tudo isso, certo? Tantos abraços, tantos olhares, silêncios, às vezes lágrimas – poucas – e abraços.
E como é impossível acompanhar o paciente sem fazê-lo simultaneamente com a família, geramos também diálogos intensos com os seus (pais e irmãos), sozinhos e de acordo com as necessidades que apresentavam. Algumas palestras foram difíceis pelas informações sobre sua doença, mas sempre amorosas, abordando as variantes dos cuidados que você precisava e poderia precisar com o passar do tempo.
Mais uma vez.
E desse lado – e deste – a incerteza. Sim, aquele que às vezes nos causa tanto sofrimento. Porque embora imaginássemos, não sabíamos como as coisas poderiam acontecer e isso causou medo a nós e a vocês. Por exemplo: como se comportaria aquele Alienígena imprudente, detestável e imparável, com risco de oclusão de suas vias aéreas, mas também de ferimentos graves e sangramento.
Pense e compartilhe com você todos os cuidados e providências que poderiam ser tomadas. Enquanto isso, continue ouvindo, contendo, acompanhando semana após semana, observando a sua deterioração e o sofrimento de uma família inteira, mas também desfrutando desse vínculo amoroso, único e irrepetível.
E aproveite as nossas sessões de terapias não farmacológicas, aquelas que você nunca faltou como corolário das visitas ao hospital - das quais sabíamos que você não gostou nada - e que você tanto gostou: você se preparou, você se acomodou, você fechou os olhos e entre palavras, massagens, música e respiração, a mágica aconteceu, aquela que você uma vez disse que era minha, mas -obviamente- aconteceu entre nós dois e então você relaxou e dormiu e o que antes poderia ter sido um Visita incômoda, desconfortável e às vezes até dolorosa devido a algumas perfurações, terminada entre sonhos e prazer.
Você gostou tanto das sessões que até me fez uma linda placa de presente para pendurar na porta, lembra? “NÃO PERTURBE, PACIENTE EM RELAXAMENTO” diz, com cores e corações.
Eu poderia falar e mencionar muitos assuntos e conversas que tivemos ao longo do tempo com você e a família, sozinho com você, sozinho com a família, mas isso não pretende ser um relato de ações, mas apenas uma história, uma narração do que agora aparece em minha mente, sem nenhum outro auxílio de memória, como foi nosso encontro nesta vida.
Você vinha uma vez por semana e era um encontro. Sabíamos que as coisas não estavam melhor, mas bem, você não administra o tempo.
Mais uma vez.
Nós vimos você na semana passada, havia algumas novas dores para aliviar. Você não poderia estar mais magro e já falava com muita dificuldade, o desconforto era ainda mais perceptível em encontrar uma posição confortável para dormir e quase só para estar, embora se lhe perguntássemos, como você estava Luz? A primeira resposta era sempre: Bom!
Você tinha que se conhecer para continuar investigando e chegar à “verdadeira verdade”, como sempre lhe disse.
O Alien prestes a explodir, ameaçador, mas contido.
E você voltou para casa, aquele lugar onde você deixou claro que mais queria ficar e a gente sempre procurou respeitar isso.
Esta semana começou mal. Você piorou ainda mais, não conseguia descansar, avisou a mamãe que estava com falta de ar e te trouxeram, fazendo tudo o que foi previamente combinado.
Apesar da medicação, você precisava de oxigênio, sua vozinha doce era ainda menor, quase inaudível, tínhamos que fazer perguntas para que depois do “Bom” você nos dissesse com voz fina: “Bom, ruim”.
Ainda poderíamos conversar sozinhos. Apesar de não revelar muitas palavras, você conseguiu mencionar seu medo de acabar com “a coisinha”, sua forma de nomear aquele fantasma da traqueia que reapareceu e que – mais uma vez – tivemos que banir para que você pudesse se acalmar para baixo um pouco. Você foi ao banheiro sozinha, queria que relaxássemos, mas, mesmo tentando, não conseguia mais. Você também deixou claro, entre soluços, que não queria que a gente te picasse para usar o cateter e então, com aquela surpresa e aquela tirania que muitas vezes o tempo tem, quando a gente queria lembrar, você decidiu que ali estava o fim, seu fim linda Luz, naquela manhã de segunda-feira.
Você tinha parado de sofrer, tinha ido para um lugar melhor, agora não dói mais. Tantas coisas podem ser ditas, não? A verdade é que você morreu e não havia como voltar atrás. O mais temido já havia sido e era inapelável.
Adoro o que faço, sou apaixonado pela minha profissão, por esta especialidade e por estes acompanhamentos e cuidados, ainda mais quando - como neste caso - se deparam com um acompanhante médico - F - com quem caminhamos, pensamos, reflectimos, conseguimos emocionamos, choramos e/ou rimos sem rodeios, competições e caminhar lado a lado, sabendo da importância de “estar” com o outro e ser uma equipe.**
Sempre penso que para fazer isso, meu trabalho, uma das coisas que devem ficar claras são os objetivos, que se fugirmos dali, ou os confundirmos, inevitavelmente iremos colidir de frente com um caminhão chamado frustração.
Mas também me considero um ser “senciente”, como diria Mestre Galeano, e, por isso, sei que é impossível não ser afetado pela morte de uma menina pré-adolescente, com quem me relacionei, conversei, ria, acariciava, apoiava, ouvi durante parte de muitos dos meus dias ultimamente.
E porque além da ciência, não entendo outra forma de vínculo que não seja com respeito, compaixão e amor, que me faltarão nas próximas semanas quando notar, como que de passagem, sua ausência.
Perguntas |
É por isso que a pergunta no início desta narrativa:
Como aqueles de nós que ajudam nesses casos sofrem? É errado pensar que deveríamos sofrer?
Como isso é visto quando alguém o eleva?
Quantas consultas a Luz atende nessa segunda-feira?
Por exemplo, observar os pais e irmãos dilacerados pelo ocorrido, contendo-os, separando-os do corpo para condicioná-lo?
Colocar o seu corpinho – a coisa mais terrível e semelhante a passar de ser humano a coisa – na sacola protocolar, antes de sua passagem ao necrotério. Por qual critério se mede essa prática?
E no meio de toda essa cena, encontre o espaço disponível para o duelo subsequente.
Como toda essa assistência é medida?
Quem mede ou valoriza e de que lugar?
Quanto de tudo o que vivemos levamos inevitavelmente connosco?
Sem dúvida, no meu entendimento, também doemos, ou deveríamos. Não é mau, faz parte da nossa tarefa e é necessário.
E deve ser reconhecido, permitido e facilitado. Eu sei que há muitos que não compartilham isso.
Estou convencido de que deve ser assim, que em princípio devemos reservar um tempo imediatamente após o ocorrido, para parar, acompanhar-nos, refletir, chorar, abraçar-nos, conversar ou simplesmente calar-nos. Cada um encontrará o caminho, o seu caminho.
Também é verdade que no dia seguinte o corpo dói, está cansado e exausto. Porque a dor dói, embora não seja vista.
E não considero que se algumas destas coisas nos acontecem, seja porque “erramos no nosso papel”, como ouvi certa vez um profissional dizer, mas que simplesmente nos acontecem porque partilhámos parte da nossa vida com um ser humano. sendo, mais precisamente, uma criança que acaba de falecer, que não veremos mais e uma família como parte desse vínculo que acaba de chegar ao fim e do qual sem dúvida sentiremos falta nos próximos dias.
Então porque não nos permitirmos essa dor para colocá-la onde ela pertence, para reconhecê-la, para lhe dar uma passagem, para nos abraçarmos e para nos curarmos também daquela perda irreparável que acabamos de ter, para podermos fechar essa vivenciar e lembrar o quanto nos deixa lindo, como sempre, cada um deles, nos transformando em seres mais humanos e mais sábios.
Obrigada Luz por todo o seu amor e à sua família por me permitir acompanhá-los, aliviá-los e cuidar deles, é sempre um privilégio, apesar do luto invisível que inevitavelmente terei que realizar mais tarde, como através desta história.
“Minha vida se faz contando e minha memória se fixa escrevendo; “O que não coloco em palavras no papel, o tempo apaga.”
-Isabel Allende