Introdução |
Desde períodos mais remotos, tentava-se separar a relação sexual da reprodução. Durante a história da humanidade, muitas tentativas foram feitas nesse sentido, como no Egito Antigo em que se usava goma arábica dentro do canal vaginal.
Na década de 1960, a contracepção hormonal oral foi desenvolvida e desde então, diversas vias (intramuscular, vaginal, cutânea e subcutânea) foram introduzidas com objetivo de ter um maior controle fertilidade, com maior aceitação populacional. No artigo, Manica e Nucci (2017) discutiram o desenvolvimento de uma dessas tecnologias alternativas, a dos implantes subcutâneos contraceptivos, e exploraram as concepções de gênero e sexualidade presentes no processo de estabilização dessa tecnologia, e de medicalização dos corpos através do uso de hormônios sexuais.
Implantes subcutâneos |
Dentre os benefícios dos implantes subcutâneos, pode-se falar sobre a possibilidade de uma dosagem hormonal inferior às diárias ingeridas com as pílulas. Além disso, o mesmo possui ação por um longo período de tempo e pouco “controle” por parte da usuária na sua administração. Talvez por conjugar essas duas últimas características, a técnica dos implantes subcutâneos teve uma trajetória marcada por controvérsias.
O Norplant foi o primeiro implante subcutâneo produzido pela indústria farmacêutica, e compreendeu um conjunto de bastonetes de silicone microporoso, que continha o hormônio levonorgestrel, com ação contraceptiva. Diversos potenciais abusos foram encontrados em relatórios sobre o fármaco como: recomendações para implantá-lo nas mulheres que quisessem, sem discutir outras opções; evidências de que alguns talvez tenham sido implantados sem saber se a paciente estava ou não grávida; a expectativa de que os implantes fossem mantidos por cinco anos, e a ausência da discussão sobre a questão da remoção; que as informações sobre efeitos colaterais eram restritas porque “muita informação poderia amedrontar as mulheres e desencorajar o uso”; e, finalmente, que 40% das usuárias relataram uma dor terrível durante a remoção.
Além disso, foi utilizado como instrumento de penalização ou punição nos Estados Unidos – como, por exemplo, no caso de um juiz na Califórnia que ordenara o seu uso para uma mulher acusada de maus tratos ao filho – e de “redenção” ou “premiação” para determinadas pessoas – como um legislador no estado de Kansas que propôs às beneficiárias da Previdência que aceitassem o Norplant, um pagamento de US$ 500 e, depois, US$ 50 por ano.
O Norplant foi um dos primeiros implantes produzidos por laboratórios farmacêuticos a ser estudado para disponibilização no mercado brasileiro. No entanto, em virtude das mobilizações contrárias, suas pesquisas clínicas acabaram sendo proibidas no país na década de 1980, bem como sua aprovação. Apesar disso, desde 1999 o laboratório farmacêutico Organon comercializa outro implante contraceptivo com um hormônio similar (etonorgestrel), chamado Implanon, cuja duração é de até três anos.
No cenário brasileiro, uma das pessoas mais influentes sobre esses implantes subcutâneos contraceptivos, é o Prof. Dr. Elsimar Coutinho. Tendo adquirido o know-how a partir de pesquisas com os mais variados hormônios, e frustradas as tentativas iniciais de patenteamento ou produção industrial desses implantes, optou por uma produção em pequena escala pelo laboratório de manipulação Elmeco e pela comercialização desses a um custo mais alto, cuja recomendação é feita de forma “individualizada”. Sua presença frequente na mídia, as publicações de livros e o testemunho de pacientes/personalidades do meio artístico colaboraram para a valorização do seu atendimento clínico, e do uso desses implantes.
Dentre os implantes comercializados, as principais indicações eram: estradiol, usado para a reposição hormonal em mulheres na menopausa; a testosterona, como complemento na reposição hormonal em mulheres, para tratamento dos sintomas como baixa da libido, depressão e perda de memória, e para reposição hormonal em homens; o levonorgestrel para reposição hormonal em mulheres, especificamente para as que têm predisposição para “pólipos endometriais”; a gestrinona, usada no tratamento da endometriose e da miomatose (entre outros) e o acetato de nomegestrol, para reposição hormonal.
Sendo assim, no contexto das pesquisas clínicas com o Norplant no Brasil, na década de 1980, a menor autonomia das mulheres em relação à tecnologia, bem como seu potencial para ser “compulsoriamente” mantido nos corpos femininos foram fatores que configuraram divergências irreconciliáveis com os movimentos sociais em defesa da saúde da mulher.
A partir da década de 2000, ressurgem no mercado farmacêutico brasileiro como uma forma segura, eficaz e relativamente duradoura para acessar tratamentos hormonais diversos. Configuraram-se como formas possíveis para a reposição hormonal ou tratamentos de saúde (para endometriose e miomas, por exemplo), e também para “suprimir a menstruação”, algo que se torna positivo e desejável ou mesmo um novo “estilo de vida” para mulheres “modernas”. Tanto em seu formato mercadológico convencional (como o Implanon) como nos produzidos pela Elmeco, os implantes passaram a ser apresentados como artefatos de “alta tecnologia” para tratamento de questões endocrinológicas.
Microchips |
Em meados de 2014, diversos meios de comunicação internacionais divulgaram o lançamento de microchips contraceptivos. Foram anunciados como uma solução prática, de longo prazo, para situações em que é necessário administrar regular e frequentemente uma substância, como no caso do tratamento da osteoporose.
Também pelo uso subcutâneo e prolongado, com duração de até 16 anos, e utilizando hormônios similares aos dos implantes, como o levonorgestrel, os microchips atualizaram a discussão sobre a tecnologia dos implantes. Este seria ativado por um sinal de rede sem fio, capaz de acionar a liberação da dosagem pré-programada da droga pelo microrreservatório. Além disso, pode ser construído com sensores que liberam as substâncias em resposta a mudanças fisiológicas ou metabólicas da paciente.
Comparativamente com os injetáveis e os implantes subcutâneos, a tecnologia dos microchips é apresentada como superior, seja pela durabilidade (de até 16 anos após a inserção), seja pela possibilidade de manejo diário e de interrupções planejáveis pela usuária ou por uma equipe médica sem a necessidade de retirada do dispositivo, ao contrário do que acontece no caso dos implantes de silicone.
Na mídia, uma das principais questões levantadas e discutidas foi a segurança da comunicação. A possibilidade de outras pessoas acessarem o dispositivo, provocando ou inibindo a liberação da substância sem o controle/ciência da usuária foi levantada como uma das inseguranças do método. Assim, as críticas abordaram a necessidade, bem como os limites, de uma codificação dos dados dos dispositivos móveis que devem controlar os microchips, problematizando a possibilidade de eles serem invadidos e manipulados por terceiros, em uma espécie de “hackeamento” ovariano.
Implantes como “chips”: tecnologia contraceptiva e o mercado da saúde |
Os meios de comunicação brasileiros produziram várias notícias sobre os “chips” contraceptivos desconsiderando quase que completamente a diferença entre esses e os implantes subcutâneos.
Pode-se dizer, assim, que da perspectiva do mercado brasileiro e do senso comum há uma ênfase na técnica de implantação subcutânea e liberação progressiva de hormônios em detrimento de suas variações tecnológicas. O uso do termo “chip” parece conferir aos antigos implantes subcutâneos uma renovação que, embora não seja (ainda) real, é positivada e desejada como se o fosse.
Em contraposição às demais técnicas contraceptivas, tanto os implantes subcutâneos quanto os microchips têm-se uma maior capacidade de individualizar e personalizar a quantidade e o tipo dos hormônios que serão implantados em cada paciente, diferentemente do padrão “massificado” dos outros métodos comercializados pela indústria farmacêutica multinacional. Além disso, também há a ideia de ser um “atendimento personalizado” ou “atendimento VIP”, somado ao fato de esses médicos aparecerem com frequência na mídia televisiva, e que seus consultórios se localizam em áreas nobres do país, com consultas caras e concorridas.
No entanto, é importante ressaltar que as quantidades das substâncias obedecem também uma certa padronização, o que sugere que essa individualização esteja condicionada a essa limitação e que seja muito mais da ordem do discurso e de uma expectativa que tem a ver com um estilo de consumo mediado pela classe social.
Além disso, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), os medicamentos industriais seriam mais seguros, pois passariam por procedimentos rígidos de controle e verificação de qualidade. Os manipulados seriam menos regulados, já que testes para verificar sua qualidade seriam praticamente inviáveis, deixando o usuário final mais exposto a possíveis erros não detectados ao longo do processo de fabricação.
Hormônios sexuais, aprimoramento e a tecnopolítica dos corpos |
Apesar de a história do seu desenvolvimento estar ligada ao controle da natalidade, os implantes não têm apenas a finalidade de contracepção ou reposição hormonal, mas funcionam também para suprimir a menstruação, incrementar a libido, aumentar a massa muscular, perder peso, reduzir a acne e diminuir a celulite. Esses seriam efeitos colaterais que seriam desejáveis pelas pacientes.
Relacionando-se a um processo mais amplo de “medicalização” é possível notar contemporaneamente a tendência de criação e multiplicação de “drogas de estilo de vida”, cujo objetivo não é fundamentalmente tratar uma doença, mas aprimorar determinadas performances ou aparências corporais.
Desde o surgimento da contracepção hormonal, na década de 1960, teria sido possível um uso contínuo dos hormônios que permitisse, para além do efeito contraceptivo, “suspender” os sangramentos menstruais. Contudo, a formulação elaborada compreendeu a adoção de um regime de uso de hormônios em forma de pílulas orais, a serem tomadas uma vez ao dia por 21 dias consecutivos, com uma interrupção subsequente de 7 dias, durante os quais deveria ocorrer um sangramento similar ao menstrual. Esse não é considerado pelos médicos uma menstruação no sentido convencional, e sim um efeito da queda brusca da taxa dos hormônios que estavam sendo ingeridos. Trata-se, acima de tudo, de uma espécie de mimese do que ocorreria “naturalmente” – efeito que foi absolutamente fundamental para a aceitação social da pílula.
Ao perceber a restrição colocada pela obrigatoriedade de “mimetizar” os sangramentos, Coutinho investiu no estudo e desenvolvimento de técnicas alternativas e também na sua legitimação perante as usuárias e a opinião pública em geral. O pressuposto básico para o funcionamento eficaz do implante é de que haverá uma administração contínua de hormônios pela liberação subcutânea progressiva. Nesse sentido, há uma mudança fundamental em relação à formatação da contracepção oral, que permite os sangramentos mensais em sua interrupção periódica. Assim, a estabilização dessa técnica dos implantes envolveu necessariamente uma positivação da ausência dos sangramentos, a defesa da sua obsolescência e “inutilidade”.
Em contrapartida, há também muita resistência a técnicas como essas e movimentos de valorização da experiência da menstruação, que inclusive recusam radicalmente o uso de hormônios sintéticos e outros procedimentos que intervenham sobre o corpo e os ciclos férteis femininos.
Uso de hormônios androgênicos em implantes subcutâneos |
Um dos “perigos” que ronda o uso dos hormônios androgênicos é o da usuária se “masculinizar”. Esse potencial viria da testosterona e da gestrinona que seriam responsáveis por aumentar a libido das mulheres, mas também por efeitos colaterais indesejáveis, como perda de cabelo e mudança na voz.
Os efeitos colaterais da gestrinona, como seborreia, acne, queda de cabelo rouquidão e ganho muscular, podem ser atenuados pelo uso da espironolactona. No entanto, isso produziria um “monstro tecnológico”. Ou seja, pode-se compensar os efeitos colaterais indesejáveis da testosterona com o uso de mais um tipo de medicação, a espironolactona (fazendo uma combinação que envolve implante + comprimidos diários). Isso não configuraria um tipo de tratamento tão desejável quanto seria o que possibilitasse resolver todas as questões necessárias com o uso de um simples comprimido, ou de um implante, cujos efeitos não precisassem ser monitorados, corrigidos ou modificados ao longo do processo. Contudo, nas usuárias dos implantes da Elmeco que apresentam esses sintomas, essa solução é empregada.
Pelos e voz são sinais mais marcantes de expressões corporais ligadas a gênero. Tratamentos com hormônios virilizantes têm que lidar com efeitos colaterais sobre esses aspectos. Por outro lado, outros efeitos, como, a libido, a celulite e a musculatura não são tão problematizados pelas usuárias. Pelo contrário, são positivados e divulgados como efeitos complementares (e desejáveis) do tratamento.
Os hormônios tendem a ser vistos exclusivamente como masculinos ou femininos. Essa concepção foi gradualmente se modificando até uma abordagem “quantitativa” de que todos estariam presentes em ambos os sexos, só que em diferentes graus. Ainda assim, a ideia de que a testosterona é a representação máxima da masculinidade permanece não apenas no senso comum, mas permeia o discurso e a prática médica e científica. Coutinho foi uma das pessoas a defender mais enfaticamente a teoria que ambos os sexos possuem ambos os hormônios e que a sua utilização através dos implantes não constituía uma mudança significativa sobre a feminilidade ou masculinidade.
Sendo assim, as discussões sobre virilização e efeitos colaterais da testosterona demonstram a instabilidade e a necessidade de constante monitoramento das quantidades de substâncias que são administradas pela via subcutânea, com os implantes (e com os eventuais chips também). Nesse processo, não somente os hormônios se apresentam como vias de controle da fertilidade e dos corpos, como também seus efeitos são modulados através da valorização ou desvalorização de determinados aspectos ligados a gênero e sexualidade (fertilidade, menstruação, músculos, libido, pelos e voz, por exemplo).