Da pesquisa ao cuidado clínico

Doenças neuropsiquiátricas e neurológicas em relação ao eixo microbiota-intestino-cérebro

O microbioma foi identificado em pesquisas como um elemento de risco significativo para o desenvolvimento de doenças neurológicas

Introdução

Observa-se um aumento global nas doenças neurológicas, elevando-as à principal causa de incapacidade e à segunda de mortalidade. Este fenômeno é uma preocupação global na saúde pública, e as projeções indicam um aumento dessa carga nas próximas décadas. O conceito do eixo intestino-cérebro destaca a interação entre o sistema gastrointestinal (GI) e o sistema nervoso central (SNC), onde esse último normalmente comanda as atividades do primeiro. Adicionalmente, o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA), responsável pela regulação das respostas ao estresse, desempenha um papel na influência da função intestinal por meio da modulação de fatores hormonais.

Por outro lado, surge-se a hipótese de que o sistema GI pode exercer influência sobre o SNC, impactando em vários aspectos cerebrais. A microbiota, através da comunicação química, incluindo sinalização direta e indireta, pode influenciar a homeostase e o comportamento do hospedeiro animal. Além disso, a afeta as concentrações de neurotransmissores (NT), implicando que os micróbios atuem como mediadores de moléculas de sinalização típicas do sistema nervoso.

Consequentemente, a microbiota está cada vez mais sendo associada a estudos pré- e clínicos como um potencial fator de risco para doenças neurológicas, tais como esclerose múltipla (EM), transtorno do espectro autista (TEA), doença de Parkinson (DP), doença de Alzheimer (DA) e acidente vascular cerebral (AVC). Por isso, Gulrandhe e colaboradores (2023) realizaram uma revisão sistemática para abordar essa relação. 

Métodos

No período de 2013 a 2023, Gulrandhe e colaboradores (2023) conduziram uma revisão eletrônica abrangendo as bases de dados Scopus, Google Scholar, Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), Web of Science e PubMed. Os termos de pesquisa adotados foram "sistema nervoso central", "distúrbios neurológicos" e "eixo cérebro-intestino", sendo combinados por meio de termos booleanos como "AND", "OR" e "WITH".

Resultados

Inicialmente, 156 registros foram examinados durante o processo de triagem, destes, 94 artigos atenderam aos critérios de elegibilidade, no entanto, 57 foram excluídos devido a erros, duplicações e outras irregularidades. Foram incluídos 37 artigos selecionados, os quais abordaram distúrbios neurológicos, tais como problemas de humor e ansiedade, EM, DP, DA, enxaquecas, TEA, esquizofrenia, além de AVC.

Eixo intestino-cérebro e doenças neurológicas

> Esclerose múltipla

A microbiota intestinal potencialmente exerce influência na EM, evidenciando a presença elevada de Mycoplasma, Pseudomonas, Faecalibacterium, Haemophilus, Anaerostipes, Blautia e Dorea em indivíduos afetados. As espécies bacterianas impactaram na quantidade de metabólitos do hospedeiro necessários para a geração de NTs no SNC. Adicionalmente, a flora intestinal secreta diversos NTs, como 5-hidroxitriptamina (5-HT), que possivelmente desempenha um papel proeminente na interação intestino-cérebro devido à sua associação com doenças neuroinflamatórias, impacto nos sistemas neurológico e imunológico, e sua regulação pela microbiota.

Evidências indicaram que, nos pacientes com EM, um grupo específico de células T auxiliares CD4+ sofre uma redução em quantidade, transitando de um papel regulador para um papel pró-inflamatório. Essas células são atraídas para o tecido linfóide associado ao intestino, um órgão imunológico em estreita interação com a microbiota intestinal. Este fenômeno sugeriu uma influência regulatória imunológica na esclerose múltipla secundária progressiva (EMSP), um estágio da doença caracterizado por origens imunológicas debatidas.

> Alterações de humor e ansiedade

Os transtornos de humor são notavelmente influenciados pelo eixo intestino-cérebro, e os pesquisadores propuseram três mecanismos prováveis: (1) uma infecção significativa que inicialmente desencadeia o sistema imunológico, resultando em episódios de mania; (2) pacientes com mania e elevadas infecções bacterianas podem apresentar uma condição de resposta imunológica reduzida; e (3) o uso de antibióticos pode alterar a microbiota, aumentando a probabilidade de mudanças nos estados de humor. O estresse, por sua vez, pode modificar os microrganismos por meio do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA). Diversos estudos destacaram a influência da microbiota no comportamento, e alterações nela estão associadas a anomalias imunológicas que afetam distúrbios semelhantes à ansiedade e depressão. Outras pesquisas revelaram que indivíduos enfrentando doenças mentais frequentemente apresentam níveis plasmáticos elevados de marcadores inflamatórios, como fator de necrose tumoral e interleucina-6 (IL-6).

> Doença de Alzheimer

Durante a disbiose microbiana intestinal, ocorre a secreção de amiloide e lipossacarídeos (LPS), resultando na quebra da barreira hematoencefálica e na permeabilidade gastrointestinal. Como consequência, o sistema de sinalização inflamatória é modificado, desencadeando neuroinflamação, dano neuronal e, consequentemente, morte celular na doença de Alzheimer. As colônias bacterianas liberam quantidades significativas de substâncias pró-inflamatórias, como LPS e amiloides. Essas moléculas podem escapar do trato intestinal e se acumular no cérebro, potencialmente contribuindo para a neurodegeneração associada à DA. Além disso, a microbiota intestinal, juntamente com bactérias orais e respiratórias, pode entrar na circulação sistêmica e acessar o tecido cerebral devido a uma barreira hematoencefálica comprometida. Isso destaca o possível papel do eixo intestino-cérebro na influência sobre a saúde cerebral e as respostas inflamatórias.

Estudos revelaram que uma substância neurotóxica denominada N-metilamino-L-alanina, produzida por uma bactéria intestinal chamada Cyanobacteria, interfere no receptor N-metil-D-aspartato glutamato, contribuindo para a disfunção sinalizadora na DA. Certos antibióticos e probióticos podem ser considerados como medidas preventivas para reduzir eficazmente a inflamação em curso, mas há uma controvérsia contínua quanto ao impacto dessas intervenções, o que requer investigações mais aprofundadas no futuro.

> Doença de Parkinson

Diversos distúrbios intestinais, incluindo infecções, disbiose, inflamação e dismotilidade, assim como intervenções e considerações dietéticas específicas, foram associados ao início e à progressão da doença de Parkinson (DP), podendo também impactar a resposta ao tratamento. Desajustes na microbiota intestinal podem hiperestimular o sistema imunológico inato da mucosa intestinal, potencialmente ativando o receptor toll-like 4 e elevando o estresse oxidativo. Este pode resultar no acúmulo de α-sinucleína em neurônios gliais e entéricos, levando à agregação dessa proteína no sistema nervoso entérico. A partir desse ponto, a a proteína neuronal pode se disseminar por vias sistêmicas e vagais, alcançando o cérebro, onde estimula a microglia, desencadeando neuroinflamação e aumentando o estresse oxidativo. A ativação da microglia induzida pela α-sinucleína pode, por sua vez, contribuir para a neurodegeneração dopaminérgica na via nigroestriatal, acelerando assim o desenvolvimento da DP.

> Enxaquecas

Investigações recentes revelaram disparidades significativas no perfil do microbioma entre mulheres sem histórico de enxaqueca em comparação com aquelas que sofrem dessa condição, e observou-se uma forte correlação positiva entre disbiose e a intensidade das enxaquecas.

Quando ocorre aumento na permeabilidade intestinal, partículas não digeridas de alimentos e metabólitos bacterianos podem adentrar a corrente sanguínea. Essas endotoxinas bacterianas, como o LPS, têm a capacidade de afetar o sistema trigeminovascular e, em última análise, desencadear sintomas semelhantes aos da enxaqueca. As principais vias fisiopatológicas associadas à enxaqueca, incluindo a transmissão serotoninérgica, a atividade do peptídeo relacionado ao gene da calcitonina (CGRP) e a ativação cortical, estão indiretamente ligadas à composição da flora intestinal.

> Transtorno do espectro do autismo

Uma pesquisa recente apontou para uma possível conexão entre a microbiota intestinal e o TEA, uma vez que muitas crianças autistas apresentam problemas gastrointestinais. Foi observado que esses transtornos estão associados a comportamentos agressivos, acessos de raiva mais intensos e perturbações no sono, agravando ainda mais seus sintomas quando comparados a autistas sem problemas gastrointestinais.

Muitos indivíduos com TEA têm histórico de uso de antibióticos, o que pode perturbar a microbiota protetora e, simultaneamente, favorecer o crescimento de bactérias anaeróbicas no estômago. No TEA, microrganismos, como Clostridia, Bacteroidetes e Desulfovibrio, podem estar relacionadas aos comportamentos autistas e aos sintomas gastrointestinais. Essas podem impactar o sistema imunológico intestinal e gerar substâncias químicas que contribuem diretamente para a fisiopatologia do autismo.

> AVC

A microbiota gera ou estimula a liberação de diversos metabólitos, como ácidos biliares, indóis, SCFAs (ácidos graxos de cadeia curta) e neurotransmissores. Esses entram na corrente sanguínea e podem impactar a função de astrócitos, microglia, neurônios e da barreira hematoencefálica ao atingirem o cérebro. Em condições metabólicas e cardiovasculares diversas, como diabetes mellitus, acidente vascular cerebral, obesidade e hipertensão, observa-se a perda de bactérias produtoras de SCFA.

Quando ocorre uma lesão hemisférica significativa, resultando na interrupção do fluxo sanguíneo na base da artéria cerebral média por uma hora, vários efeitos podem se manifestar, como a perda de inervação colinérgica no íleo, aumento da permeabilidade intestinal, paralisia intestinal e intensificação da atividade simpática. Essa mudança da transmissão colinérgica para a adrenérgica pode desencadear inflamação intestinal. A disbiose intestinal desencadeada por um acidente vascular cerebral parece desenvolver uma série de eventos que contribuem para infecções pós-acidente vascular cerebral.

> Esquizofrenia

Alguns estudos indicaram que modificações no microbioma podem contribuir para irregularidades no desenvolvimento cerebral, controle imunológico e função metabólica associadas à esquizofrenia. Estudos com ratos revelaram que a microbiota pode influenciar a cognição e o desenvolvimento de comportamentos sociais, ambos prejudicados na esquizofrenia. Pacientes diagnosticados com a doença apresentaram níveis elevados do marcador inflamatório CD-14 em comparação com os saudáveis. Além disso, esses pacientes exibiram m menor diversidade microbiana na cavidade oral, e a composição microbiana geral diferiu significativamente entre indivíduos com esquizofrenia e aqueles sem o transtorno. O transplante de bactérias intestinais humanas demonstrou que pode ser promissor para aprimorar as abordagens terapêuticas da esquizofrenia.

Conclusão

A conexão entre o eixo intestino-cérebro está intrinsecamente ligada a vários distúrbios neurológicos. Muitos estudos têm explorado esses mecanismos, utilizando predominantemente modelos animais. Atualmente, os pesquisadores continuam a investigar a relevância dessa relação em doenças humanas. Para estabelecer essa ligação como um fator patogênico nas doenças neurológicas humanas, são necessários ensaios clínicos em larga escala e altamente controlados. Tais ensaios representarão um avanço significativo ao possibilitar intervenções direcionadas ao intestino como estratégias de manejo na próxima geração dessas condições.