Estudo prospectivo

Dinâmica do microbioma intestinal, resposta de IgA e metaboloma plasmático no desenvolvimento da doença celíaca pediátrica

Os progressores de DC pediátrica têm uma composição distinta de microbiota intestinal, metaboloma plasmático e perfil de citocinas antes do diagnóstico

Introdução

A doença celíaca (DC) é um distúrbio autoimune desencadeado pelo consumo de glúten. Quase todos os pacientes com a enfermidade possuem haplótipos do antígeno leucocitário humano (HLA) DQ2/DQ8; no entanto, apenas um pequeno subconjunto desenvolve a doença propriamente dita, indicando o papel de fatores ambientais na patogênese.

Com isso, Girdhar e colaboradores (2023) desenvolveram um estudo com o objetivo de determinar o papel contribuinte da microbiota intestinal e dos metabólitos microbianos na progressão da DC.

Métodos

Foi realizado um estudo prospectivo com sujeitos da coorte All Babies in Southeast Sweden (ABIS). Amostras fecais frescas foram coletadas em casa ou na clínica e congeladas imediatamente. Questionários e amostras biológicas foram coletados aos 1, 2 e meio, 5 e 8 anos de idade. Posteriormente, questionários de acompanhamento e pela internet foram conduzidos aos 11-13 e aos 17-18 anos, respectivamente. O questionário foi preenchido pelos pais para coletar informações de saúde dos participantes, incluindo, mas não se limitando a, duração da amamentação, uso de antibióticos e tempo de exposição ao glúten. Foram pareados com controles saudáveis que não haviam desenvolvido nenhuma doença autoimune com base em idade, sexo e tipo de HLA.

Foi realizado o sequenciamento 16S e sequenciamento de imunoglobulina-A (IgA-seq) com amostras fecais obtidas das mesmas crianças (i) 16 controles e 15 progressores de DC aos 2,5 anos e (ii) 13 controles e 9 progressores de DC aos 5 anos. Completaram o perfil de citocinas e a metabolômica plasmática usando amostras de plasma obtidas aos 5 anos (n=7-9). Também determinaram os efeitos de um metabólito derivado da microbiota, ácido taurodesoxicólico (TDCA), no intestino delgado e na composição celular imune in vivo.

Resultados

Denominaram-se progressores da DC indivíduos que estão progredindo ou desenvolvendo a doença. Esses apresentaram uma composição distinta de microbiota intestinal, uma resposta aumentada da imunoglobulina A (IgA) e de seus alvos únicos em comparação com indivíduos saudáveis.  

A (IgA) é o isotipo de anticorpo mais abundante nas superfícies mucosas e é um importante mediador da imunidade intestinal em humanos. A análise revelou um aumento de duas vezes das bactérias IgA+ em progressores de DC, especificamente aos 5 anos.

Espécies anti-inflamatórias, incluindo B. uniformis e B. stercoris, estavam diminuídas em progressores de DC em comparação com indivíduos saudáveis.

Em crianças saudáveis, foram identificados 89 Amplicon Sequence Variant (ASVs) aos 2 anos e meio e 37 ASVs aos 5 anos que diferiam significativamente entre amostras IgA+ e IgA-. Os principais alvos da IgA em crianças saudáveis aos 2 anos e meio foram Clostridium IV e Bifidobacterium, enquanto aos 5 anos foram Gemmiger e B. bifidum.

Por outro lado, nos progressores de DC, foram identificados 92 ASVs aos 2,5 e 5 ASVs aos 5 anos que diferiam significativamente entre amostras IgA+ e IgA-. Alguns dos principais alvos da IgA em progressores de DC foram semelhantes aos encontrados em crianças saudáveis, mas também foram observados alvos únicos de IgA em progressores de DC, como Coprococcus comes e Leuconostoc aos 2,5 anos. Esses táxons foram considerados comensais protetores da barreira intestinal.

Além disso, os progressores de DC apresentaram uma resposta de IgA distinta e mais intensa no intestino. Ao avaliar 48 citocinas dos participantes, três foram identificadas como pró-inflamatórias. O aumento dessas pode ter um potencial papel na progressão da doença.

Notavelmente, 26 metabólitos plasmáticos, cinco citocinas e uma quimiocina foram significativamente alterados em progressores de DC aos 5 anos de idade.  Entre os metabólitos, identificou-se um aumento de 2 vezes do ácido taurodesoxicólico, TDCA, um ácido biliar conjugado pró-inflamatório que é principalmente produzido por micróbios intestinais, particularmente Clostridium XIVa e Clostridium X.

O aumento do TDCA é potencialmente um dos principais componentes precoces da inflamação intestinal na DC.

Para determinar os efeitos do TDCA no hospedeiro, camundongos foram alimentados com ração padrão ou ração suplementada com TDCA (0,4% em peso/peso) por 10 semanas. O tratamento causou atrofia vilosa, aumento de células T CD4+, células natural killer e expressão de duas proteínas imunorreguladoras importantes, Qa-1 e NKG2D, em células T, enquanto diminuiu células T regulatórias em linfócitos intraepiteliais (IELs) em camundongos C57BL/6J. Essas são as principais mudanças fenotípicas relatadas durante a progressão da DC. Assim, os achados demonstraram que o TDCA está potencialmente ligado às alterações relacionadas à progressão da DC no intestino delgado.

Conclusão

Os progressores de DC pediátrica têm uma composição distinta de microbiota intestinal, metaboloma plasmático e perfil de citocinas antes do diagnóstico. Além disso, um elo potencial entre o TDCA e a inflamação intestinal foi estabelecido. Sendo assim, esse tem o potencial de servir como um marcador diagnóstico precoce da doença, e, mais importante ainda, o direcionamento de bactérias produtoras desse metabólito na infância precoce poderia ser uma abordagem para o manejo da DC. Compreender o papel da microbiota intestinal e de seus produtos tem o potencial de abrir novas perspectivas para entender a patogênese da doença e revelar novos modelos de prevenção e tratamento.