“Quando o sábio aponta para a lua, o tolo olha para o dedo” (Confúcio)
Nós, médicos, nos acostumamos a considerar que a ignorância consiste em não ter informação. Mas a realidade, na sua vertiginosa transformação, confronta-nos com outras formas da palavra. Ignorância não é não ter informação, mas sim não saber. É possível não saber por que há falta informação, mas também por tê-la, mas não saber o que fazer com ela, qual o seu significado, a sua relevância ou qual a sua pertinência num determinado contexto. A informação é um insumo para o conhecimento, não sua definição. Por exemplo, enho muitas informações sobre as regras do futebol, mas “não sei” jogar. Ou seja, sou um “ignorante” em qualquer posição de jogo.
Esse tipo de mal-entendido é produto do uso indiscriminado dos termos conhecimento e informação como se fossem equivalentes. A medicina muitas vezes se sente confiante porque está sobrecarregada de dados que confunde com conhecimento. Quando as circunstâncias nos confrontam com a incerteza clínica, apelamos à sua resolução com o único recurso que aprendemos a valorizar: mais informação. Mas acumular dados sem uma hipótese multiplica a incerteza em vez de a atenuá-la. Depois, voltamos a “carregar” mais informações como se elas fossem o único combustível para o pensamento. Dados cada vez mais complexos, cada vez mais sofisticados, cada vez mais inúteis.
A informação por si só não explica o mundo. A partir de um ponto crítico, até escurece o mundo. (Byung Chul Han, Infocracia).
A informação é essencial e ao mesmo tempo completamente insuficiente. O que nos torna médicos é saber que tipo de informação precisamos para confirmar ou refutar uma hipótese. O segredo é selecionar dados relevantes, cenário, desejos e valores dos pacientes. As conjecturas diagnósticas precedem a busca pela informação, nunca a seguem. Nenhuma nasce da mera acumulação de dados. E quando isso acontece, sugerido por descobertas imprevistas, é geralmente fútil e irrelevante para os propósitos do caso real (é incidental, não causal). Não é que não encontremos anormalidades ou disfunções ao solicitar estudos sem critério diagnóstico que os oriente; Pelo contrário, a verdadeira calamidade é que os encontramos.
Tal como Yu Tsun, personagem de “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam” de Jorge Luis Borges, seguimos caminhos secundários que se ramificam até ao infinito e que em vez de nos aproximarem, afastam-nos do objetivo. Caímos numa infinidade de dimensões paralelas de diagnósticos que não procurávamos e que nada têm a ver com o motivo original. Ou pior ainda, tomamos estes novos dados como as causas do desconforto que estudamos quando nada mais são do que meras associações não causais. Os caminhos nunca acabam, o labirinto fecha-se sobre si mesmo. Andamos em círculos porque não sabemos para onde estamos indo.
O objetivo da medicina é a relevância clínica, NÃO a significância estatística ou a modificação de variáveis substitutas.
Desorientados, mas convencidos, porque nos ensinaram – e aprendemos isso obedientemente e sem críticas – que a medicina consiste em acumular dados e procurar obsessivamente a certeza. Não vemos que o não vemos. Esta cegueira é um escotoma epistemológico que nos impede de perceber e pensar sobre o que fazemos (metacognição). Não só no diagnóstico, mas também nas intervenções terapêuticas: artérias obstruídas sem sintomas que são automaticamente desobstruídas sem considerar as evidências que desaconselham; imagens de alta complexidade na lombalgia sem sinais de alerta; alimentação enteral na demência avançada; alimentação parenteral precoce em terapia intensiva; cirurgia bariátrica indiscriminada sem considerar o contexto ou o perfil metabólico e hormonal etc. As variáveis são modificadas, mas não a evolução clínica, no que se chama de “ilusão de controle”, um desvio cognitivo típico do raciocínio inválido. O objetivo da medicina é a relevância clínica, NÃO a significância estatística ou a modificação de variáveis substitutas.
Descrever não é explicar. Podemos estar rodeados de dados verdadeiros, mas não compreender os fenômenos de onde eles provêm. O biólogo Daniel Nettle diz: "As explicações, pelos padrões da comunicação humana, não devem apenas ser verdadeiras , mas também relevantes . Quando explicou por que a casa dele pegou fogo: 'havia oxigênio na atmosfera' é uma explicação ruim. " alguém estava fumando na cama" é uma boa explicação.
O Mapa e o Território
Confundir o mapa com o território é uma tragédia clínica
Frequentemente são publicados trabalhos de pesquisa que mostraram resultados negativos em relação a intervenções que, embora eficazes na modificação de uma variável ou biomarcador específico, não conseguem ter impacto clínico na evolução do paciente. Felizmente, o método científico oferece salvaguardas para evitar confusão entre variáveis substitutas e resultados concretos, como mortalidade, sobrevivência ou aparecimento de episódios clínicos graves.
A era do “Big Data” na biologia e na medicina não consiste na mera acumulação de variáveis quantitativas, está indissociavelmente associada a uma teoria que as sustenta: a biologia de sistemas e a medicina. É, ao contrário do que se costuma acreditar, este corpo teórico que orienta a integração dos dados numa perspectiva sistêmica capaz de dar conta das propriedades emergentes de fenômenos complexos como a vida ou a doença que não podem ser compreendidos a partir do reducionismo.
“Quem dedica parte do seu tempo ao estudo da epistemologia: não confundirá o que é postulado com o que é deduzido, a convenção verbal com os dados empíricos, a coisa com as suas qualidades, o objeto com o seu conhecimento, a verdade com os seus critérios”. Mário Bunge
Nas mais diversas circunstâncias do quotidiano recorremos a indicadores quantificáveis que utilizamos como medidas de situações clínicas complexas: febre, pressão arterial, peso, glicemia, colesterol. Estes não são “causas”, pois as coisas não podem ser causas, apenas os processos podem ser; “Não é o punhal, mas a facada que dói”, como nos ensinou Mario Bunge. Sabemos que as suas modificações indicam apenas alguns aspectos que covariam com a evolução das doenças nas quais são utilizadas. Sabemos disso, mas quase sempre esquecemos. No raciocínio clínico é recomendado que nosso cérebro analítico supervisione o que o intuitivo faz sem nos consultar. O mundo em que a correspondência entre causa e efeito é individual é fácil de compreender, mas não é o tipo em que habitamos.
Dessa forma, movidos pela repetição da sequência de: medir, intervir e medir novamente, podemos confundir medir com o que é medido (“o dedo que aponta para a lua com a lua apontada pelo dedo”). Cada medição é corrompida quando a própria métrica é priorizada em relação à característica que representa. A automatização de comportamentos ou o monitoramento impensado e descontextualizado de algoritmos e diretrizes de prática clínica também facilitam esse descuido imperdoável.
Cada medição é corrompida quando a própria métrica é priorizada em relação à característica que representa.
É possível que, como tantas outras vezes, as palavras (ou o uso que delas fazemos) acabem substituindo o que designam. Como se o dedo que aponta para a coisa fosse confundido com a coisa apontada pelo dedo. É muito comum - na medicina e na vida - tomarmos uma coisa por outra: o sucesso pelo prestígio, o prazer pela felicidade, a epidemiologia pela clínica, um biomarcador para a doença, o risco pelo perigo, à correlação pela causalidade, à biologia pela biografia, a permitir a morte por permitir a morte. Como o Cavaleiro Cavalheiro, consideramos os rebanhos como exércitos.
A linguística nos oferece um conceito muito interessante do qual poderíamos nos apropriar: a metonímia. Também chamada de transnomeação, é um fenômeno de mudança semântica pelo qual uma coisa ou ideia é designada com o nome de outra utilizando alguma relação entre as duas. Ou seja, uma palavra, um signo, que evoca um conceito geralmente mais complexo. A parte pelo todo, um significante que se desloca em direção a outro significante que lhe está próximo. Existem vários tipos e formas de usar a metonímia.
O que acontece na prática médica?
«Na vida, senhor, tudo o que precisamos são de fatos, nada mais do que fatos! Andamos sempre com a régua e a balança no bolso, prontos para pesar e medir qualquer partícula da natureza humana. Educação e vida são números, um caso de pura aritmética. (Charles Dickens, “Tempos difíceis”, 1854)
Na clínica poderíamos afirmar que o peso corporal ou o índice de massa corporal foram indicadores (embora muito imperfeitos) de obesidade, valores de pressão arterial de doença hipertensiva, glicemia de diabetes, altura de crescimento etc. Dado que a prática nos obriga a interagir diariamente com essas medidas, não é incomum que adquiram um caráter ontológico ilusório, ou seja, coisas ou objetos em si, com entidade própria. Desta forma focamos numa variável, perdendo de vista aquilo de que ela é um indicador. Substituímos uma coisa por outra, como a metonímia faz com os significantes linguísticos.
Se reduzirmos o nível de colesterol plasmático para prevenir a aterosclerose ou o nível de glicemia para evitar ou retardar a retinopatia ou a insuficiência renal diabética, é aconselhável não ofuscar o objetivo final escondido sob o fascínio pelos números e pelo que é mensurável. Uma rápida observação de algumas das ações que tomamos diariamente e das atitudes que elas revelam seria suficiente para compreender que devemos lembrar periodicamente que:
- Os números da pressão arterial NÃO são doença hipertensiva.
- Os níveis de glicose no sangue NÃO são diabetes.
- Peso NÃO é obesidade.
- Os níveis de colesterol NÃO são aterosclerose.
Em outro artigo publicado na IntraMed lembramos que: “os corpos não são coisas, mas processos que contam histórias. A clínica não pode cometer o erro de ignorá-los”. A clínica é atravessada por um trânsito contínuo de histórias. Narrativas cotidianas que buscam dar sentido ao que nos acontece na vida. Se aguçares os ouvidos ouvirás vozes ou silêncios eloquentes que falam de sofrimentos sempre únicos, íntimos, pessoais. Sem palavras, a medicina não seria nada. Apenas uma técnica medíocre e auto satisfeita. Um deserto de números e algoritmos a serviço da padronização das pessoas. Nenhum desses valores pode ser capturado pela quantificação como único recurso de investigação. Seus valores são qualitativos e irredutíveis a números.
Segundo a epistemóloga Judea Pearl em seu livro "O livro do porquê": "Modificar um indicador pode não modificar uma causa. Ver o barômetro cair aumenta a probabilidade da tempestade, enquanto forçá-lo a cair não afeta essa probabilidade. Ninguém considera que a queda do barômetro é a causa da próxima tempestade."
Operacionalismo é o erro metodológico que consiste em identificar um fenômeno com a operação que realizamos para verificar sua presença. Assim, o tempo poderia ser identificado pelo tique-taque de um relógio ou a temperatura pela leitura de um termômetro. Isto não é um cano!
Quando você está indo na direção errada, o progresso está andando para trás.
Ao obcecarmos a nós mesmos e aos nossos pacientes com a aritmética das variáveis, poderíamos confundir os verdadeiros propósitos das intervenções que realizamos. Todos sabemos que é possível modificar muitos deles sem que isso se traduza automaticamente no impacto clínico que pretendemos ou, o que é ainda pior, o agrave. Muitas investigações demonstraram na prática que isto é possível: torcetrapib na doença coronária, tratamento glicêmico intensivo na diabetes, cirurgia artroscópica do joelho, rastreio indiscriminado do cancro da mama, da próstata, do rim ou da tiróide etc.
Cada uma dessas variáveis opera num contexto, indicando situações muito mais complexas do que aquilo que a mera figura pode denotar, o que em nada prejudica a sua própria – e muitas vezes essencial – existência. O que é apontado pode ser ocultado pelo que é apontado. O objetivo final das intervenções médicas são eventos clínicos difíceis e significativos para a extensão e qualidade de vida das pessoas, e não a modificação de biomarcadores.
Uma régua que se medisse seria um instrumento autorreferente que se situaria nos limites da inutilidade e da loucura. Termômetros, balanças, monitores de pressão arterial, ressonadores magnéticos ou determinações bioquímicas são próteses tecnológicas que ampliam a visão e orientam o julgamento clínico, mas que estão ao seu serviço e não um substituto. A sedução dos números, a pretensão utópica de reduzir o mundo às suas dimensões, confundindo as formas de estudar a realidade com a própria realidade, é um risco para o qual se deve alertar. Os indicadores são um recurso para conhecer coisas e processos (gnoseologia) mas não as coisas ou processos que pretendemos conhecer (ontologia).
Um diagnóstico sempre foi um crime de opinião para mim. (António Lobo Antunes, Segundo livro de crónicas)
Nosso apetite por encerramento é um desvio cognitivo muito comum. Os atalhos de pensamento (heurísticas) são muito úteis em certos contextos, mas muito perigosos em outros. Nomear algo geralmente limita o esforço para continuar investigando. É um sinal que acalma e desativa a curiosidade epistêmica. Nos tempos que vivemos há uma grande pressão social e institucional para dar nome às coisas. A incerteza clínica é uma emoção aversiva e esse traço é o estímulo para a busca. Fechá-lo sem resolver é um placebo para os médicos ou para a burocracia, mas um perigo para os pacientes. O diagnóstico é uma ferramenta conceitual com valor pragmático exclusivo em sua área de aplicação. Não esgota a descrição de um fenómeno – nem pretende fazê-lo – porque reconhece o “excesso de significado” de toda a experiência humana. (Humildade epistêmica).
“O que é comum no homem é a tendência de acreditar na verdade em tudo o que lhe é útil. É por isso que há tantos homens capazes de comungar com as rodas do moinho.” (António Machado, “Juan de Mairena”)
É claro que nada disso acontece porque somos estúpidos ou porque seres perversos estão empenhados em distorcer a realidade. Isso também é reducionismo (social). Os comportamentos são reproduzidos porque existe uma estrutura de incentivos que os promove. Ou seja, operam dentro de um dispositivo cultural, científico, econômico (ou de outro tipo) que recompensa determinadas ações e não outras. Um princípio evolutivo da nossa espécie é que “o que é recompensado é reproduzido”. Este simples axioma biológico faz parte da estrutura causal do mundo, mesmo quando nos esforçamos para ignorá-lo. Como afirma o psicólogo evolucionista David Pinsof : “Quanto mais conscientes estivermos de nossas estruturas de incentivos, mais incentivados seremos a escolhê-las com sabedoria”.
“Talvez o maior problema que as ciências académicas enfrentam seja que o que é mensurável é muitas vezes irrelevante, e o que é relevante é muitas vezes imensurável.” (George Vaillant)
Correndo atrás de dados e não chegando a lugar nenhum
Assim como os mapas da história de Borges que tinham o tamanho exato do território que representavam, muitas vezes sucumbimos ao apetite de admiração e acreditamos que um signo é capaz de significar tudo. Depois, a teimosa diversidade do mundo nos sacode para nos arrancar da ambição de encontrar um nome que contenha a totalidade do que é nomeado. Um Aleph utópico com o qual somos hipnotizados e manipulados repetidas vezes sem que possamos aprender com os sucessivos fracassos. A enorme necessidade das pessoas de manter uma narrativa consistente pode superar a memória do que realmente aconteceu.
Que a ciência recorta a realidade com o propósito de estudá-la, que constrói indicadores que se referem a fenômenos que os ultrapassam. Em suma, o fato de gerar modelos conceptuais e objetos de conhecimento não implica que as suas construções substituam a complexidade muitas vezes inacessível da realidade. Fechar deliberadamente um olho para focar seu olhar em um aspecto minúsculo e particular não é o mesmo que nunca mais abri-lo. Esquecê-lo é um erro epistemológico, é um caminho direto que leva ao excesso diagnóstico e terapêutico, uma forma pouco sutil de abusar de analogias e substituições. Uma forma de ignorância esclarecida, uma vulgaridade.
A medicina é a implementação do conhecimento a serviço do sofrimento. Não o contrário. A clínica nada mais é do que a tentativa de uma pessoa de aliviar o sofrimento de outra. O resto são dispositivos, recursos, tecnologias ou meros espelhos coloridos que competem pelo centro de uma cena que nunca deveriam ocupar. Ser médico significa decidir quando fazer algo, mas também quando não fazer. Não são os pacientes que devem conformar-se às nossas definições, mas sim estes a eles. Quem decide qual é o critério da verdade, quem impõe o que deve ser medido e com que instrumentos o fazer, quem decide qual é a solução, o que é sucesso e o que é fracasso, decide também em que consiste o problema. Então, ele não apenas sabe, ele comanda. Isso não é inocente e é muito perigoso. O imperativo categórico da profissão é humano, não técnico. Estamos tão obcecados por métricas esclarecedoras que obscurecemos o que é medido. Tão concentrados no mapa que perdemos de vista o território. Tão sobrecarregados com as respostas que esquecemos as perguntas.
Daniel Flichtentrei (2024)