Imersa em um tempo de crise política, social e culturas, a Viena que cavalgava entre o fim do século 19 e o começo do novo século também abrangeu uma intelectualidade capaz de imprimir a cidade em estado de notórias transformações. Imbuídos de uma força criativa excepcional nos campos do pensamento, da ciência e das artes, os seus protagonistas passaram a formar uma admirável rede de locais de encontro e debate. Entre os espaços onde se fomentou tal rede relacional, destacou-se o salão supervisionado por Berta Zuckerkandl-Szeps (Viena 1864-Paris 1945); salonnière, escritora e jornalista.
Seu pai, Moritz Szeps, era o proprietário do Neue Wiener Tagblatt e apoiava muito uma aliança austro-francesa através de suas conexões com políticos gauleses como Georges Clemenceau. Berta cresceu em um ambiente onde esse tipo de tema ganhava precedência na agenda familiar, impactando muito favoravelmente na educação de seus cinco filhos. Aos 22 anos casou-se com o anatomista Emil Zuckerkandl e em 1895 nasceu o único descendente, Fritz Zuckerkandl. Emil era bastante conhecido no campo da anatomia, em parte por sua descoberta da fáscia que cobre o rim. Ele também era músico, apaixonado pelas artes e fiel defensor da causa cultural e feminista de sua esposa.
O casamento da sua irmã Sophie com Paul Clemenceau, irmão do primeiro-ministro francês Georges, fez com que Berta fizesse repetidas visitas a Paris, frequentando o salão dirigido por Sophie para conhecer figuras como Auguste Rodin e Maurice Ravel. Berta decidiu então fazer o mesmo na sua cidade. O primeiro salão localizava-se no distrito 9, (1889-1897); a segunda numa zona próxima (1897-1903); enquanto o terceiro na periferia da cidade (1903-1914). Algum tempo depois mudou-se para o Palais Auspitz (1916-1938), pertencente a personalidades proeminentes e amigos próximos. Celebridades como Gustav Klimt, Arthur Schnitzler, Richard Beer-Hofmann, Franz Werfel, Hugo von Hofmannsthal, Alban Berg e Egon Wellesz desfilaram nesses locais. Berta também manteve amizade com Josef Hoffmann, arquiteto pessoal da família, e Otto Wagner. Ela foi animada por um firme compromisso de apoiar artistas de vanguarda, especialmente os chamados separatistas. Alma Mahler-Werfel e Gustav Mahler conheceram-se precisamente num dos seus salões em Novembro de 1901.
Infelizmente, o ímpeto e a excitação dos primeiros anos da Secessão tinham diminuído na altura da primeira guerra, tal como as exposições de arte. Após a conflagração, e com o consentimento dos partidos Socialista e Conservador austríacos, esta versátil mulher estabeleceu contatos informais com o homólogo francês como diplomata não oficial. Neste contexto, opôs-se fortemente ao movimento de anexação do seu país à Alemanha.
Com os ventos que continuavam a soprar contra ele, na década de 1930 o salão havia perdido o brilho, principalmente como resultado de uma difícil situação financeira. Dado o seu estatuto judaico, em 1933 ela até deixou de receber royalties da Alemanha Nacional Socialista pelo seu trabalho de tradução.
Longe de desistir, no início de 1938 debateu avidamente o destino da sua nação com o historiador Egon Friedel, o dramaturgo von Horvath e outros membros da intelectualidade vienense. Poucos dias depois, Egon se atiraria de uma janela na cara dos nazistas.
Áustria anexada à Alemanha de Hitler, ele teve que fugir para a França, onde morava seu filho Fritz. Lá, ele manteve contato próximo com outros refugiados. Quando o país foi ocupado em 1940, a distinção da Legião de Honra concedida em 1929 facilitou-lhe a fuga para a Argélia com o filho, onde exerceu o ativismo antinazi, nomeadamente através de emissões de rádio. Após a conquista de Argel pelos Aliados, no final de 1942, trabalhou numa estação de rádio criada por aquelas tropas. Em setembro de 1945 ela retornou a Paris doente e morreu em 16 de outubro de 1945.
Mas aquela cidade de salões memoráveis também conheceu o tão citado Círculo de Viena (1924-1936), uma espécie de encruzilhada entre filósofos com formação científica e investigadores atraídos pela filosofia, que sob a liderança de Moritz Schlick abordou questões centrais daquela encruzilhada particular. Entre os membros da primeira hora estavam os matemáticos Hans Hahn, Theodor Radacovic e Gustav Bergmann, o físico Philipp Frank, o sociólogo Otto Neurath, o filósofo Viktor Kraft e, a partir de 1926, o grande Rudolf Carnap. Alunos de Schlick (Friedrich Waismann, Herbert Feigl e Marcel Natkin) aderiram, assim como outros de Hahn (Karl Menger e Kurt Gödel). Ao longo dos anos, juntaram-se discípulos posteriores como Josef Schächter, Walter Hollitscher, Heinrich Neider e Josef Rauscher, o jurista e filósofo Felix Kaufmann, bem como o psicólogo Egon Brunswik.
A partir de 1934, com o anti-semitismo e o irracionalismo narcotizando a sociedade, o Círculo entrou num período de grande perigo. Não só a Sociedade Ernst Mach (sua primeira sede) foi fechada no início daquele ano, mas houve um sangramento contínuo de seus membros devido à emigração, exílio forçado e mortes a tal ponto que apenas um pequeno grupo conseguiu continuar as reuniões até 1936. A lista inclui fugitivos/emigrantes para os EUA (Feigl, Carnap, Menger, Frank, Kaufmann, Brunswik, Bergmann e Gödel), Reino Unido (Neurath e Waismann), Suíça (Hollitscher mais tarde para o Reino Unido) e Palestina (Schächter). Enquanto Hahn morreu em 1934 e Schlick foi assassinado em 1936.
Fora das diferenças contextuais presentes em situações como as descritas, o denominador comum da intolerância está subjacente a todas elas. Uma lamentável antítese do termo latino tolerantia (derivado de tolerare), cujo significado consistia em suportar, suportar, ser condescendente e assim enfrentar os aborrecimentos da vida sem se deixar abater por eles, hoje extensível também à aceitação das diferenças. Quando confrontadas com questões de religião, política, economia, ciência ou artes, as pessoas tolerantes respeitam a visão dos outros e não tornam a sua expressão impossível para garantir uma saudável liberdade de opinião.
Muitas décadas tiveram que se passar antes que o papel proeminente de Berta na formação do modernismo vienense fosse reconhecido. Felizmente, hoje ele ocupa o lugar que sempre mereceu. Em 2009, no 9º distrito de Viena, uma rua recebeu o seu nome.
Por seu lado, o fim do Círculo de Viena enquanto tal não significou, no entanto, a extinção da sua influência. Vários dos emigrantes conseguiram garantir que o empirismo lógico pudesse impactar a filosofia analítica da ciência graças à atividade que desenvolveram durante o pós-guerra.
Estamos aludindo a anedotas do passado? De forma algum este mundo ainda é de dura compreensão e na sua teimosia em assimilar as cruéis lições da história nada mais faz do que endossar aquela afirmação de Willa Cather que Lelouch transcreve no início de “The Ones and the Others”: existem apenas duas ou três histórias na vida dos seres humanos e elas são repetidas tão cruelmente como se nunca tivessem acontecido.
Envolto numa retórica grandiloquente, o flagelo da intolerância adquire hoje até conotações quase pandémicas. E embora a situação pareça tão problemática, avançar no sentido do estabelecimento de uma sociedade aberta é igualmente inevitável, porque se trata de uma coabitação harmoniosa. Além disso, naqueles onde a prática consegue se consolidar, vale também a pena considerar o que Karl Popper designou como o paradoxo da tolerância. No bom romance, para preservar a convivência civilizada, não se pode ignorar os intransigentes, caso contrário nos exporemos à arbitrariedade dos seus desequilíbrios. Diletantes de noites escuras e fechadas, sem interesse em aceitar, mas sim em erradicar tudo o que não se enquadra nos seus padrões.