Atualização da Prática Clínica da AGA

Dor gastrointestinal crônica em distúrbios de interação intestino-cérebro

Estão presentes em mais de 40% da população mundial

Abreviações usadas neste documento: 5-HT (5-hidroxitriptamina), CAPS (Síndrome da Dor Abdominal Mediada Centralmente), DGBI (Distúrbios da Interação Intestino-Cérebro), DF (Dispepsia Funcional), SII (Síndrome do Intestino Irritável), IBPs (Inibidores da bomba de prótons), RCT ( ensaio controlado randomizado), IRSN (inibidor da recaptação da serotonina-norepinefrina), ISRS (inibidor seletivo da recaptação da serotonina), TCA (antidepressivo tricíclico)


Introdução

Os transtornos da interação intestino-cérebro (DGBI), incluindo a síndrome do intestino irritável (SII), a dispepsia funcional (DF) e a síndrome da dor abdominal mediada centralmente (CAPS), estão presentes em mais de 40% da população mundial.

A maioria dos pacientes com a condição são tratados inicialmente com terapias direcionadas a estímulos viscerais, como a alimentação e evacuação. Por exemplo, os pacientes com DGBI esofágico ou gastroduodenal, como pirose funcional ou DF, frequentemente são tratados com inibidores da bomba de prótons (IBP), que podem ser eficazes.

Os tratamentos dietéticos de primeira linha, os antidiarréicos e os laxantes são usados com frequência na SII, porém possuem eficácia limitada para a dor abdominal.

Infelizmente, um subconjunto de pacientes com DGBI continuam experimentando a dor, o que gera um impacto negativo na qualidade de vida relacionada a saúde.

O manejo de pacientes com dor que não responde a terapias de primeira linha direcionadas a estímulos viscerais é completo e influenciada por uma variedade de fatores cognitivos e afetivos, incluindo a aprendizagem e as expectativas em torno da dor, e a outros modificadores psicossociais como sobreposição de humor e transtornos de ansiedade.

O manejo eficaz requer o estabelecimento de uma relação colaborativa entre paciente e profissional e deve-se evitar medicamentos com potencial de uso indevido, como os opioides.

As opções de manejo incluem terapias farmacológicas e não farmacológicas. Com isso, a American Gastroenterology Association atualizou os conselhos de prática clínica que se concentravam  no manejo de pacientes com DGBI cuja dor não melhorou com terapias direcionadas a estímulos viscerais. A revisão não discutiu o uso de terapias complementares ou alternativas como Cannabis e não foi aplicada ao tratamento de síndromes de dor pélvica ou da parede abdominal.

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O manejo eficaz da dor persistente em distúrbios de interação intestino-cérebro requer um relacionamento colaborativo, empático e culturalmente sensível entre paciente e profissional da saúde. O desenvolvimento dessa relação é necessário para abordar o manejo da dor persistente no DGBI.

Os pacientes podem ter visto diversos profissionais da saíude sem benefício ou melhora clara e podem estar insatisfeitos com seus cuidados. Uma abordagem sensível e sem julgamento integrará os cuidados médicos com as informações psicossociais para alcançar os resultados desejados. Devido às diferenças culturais na compreensão e interpretação da dor, bem como nas estratégias preferidas de tratamento, também é necessário abordar a dor de maneira culturalmente sensível para que os pacientes respondam de maneira eficaz.

Inicialmente, a história clínica deve ser obtida por meio de entrevista não dirigida com questões abertas. Perguntas fechadas podem ser usadas posteriormente para maiores esclarecimentos. Além disso, deve-se abordar explicitamente o impacto dos sintomas na qualidade de vida relacionada à saúde e funcionamento diário dos pacientes, pois isso ajuda a estabelecer um relacionamento e permite que o provedor da saúde direcione as intervenções mais claramente específicas para melhorar a função. Os exemplos incluem: "Como seus sintomas interferem em sua capacidade de fazer o que deseja em sua vida diária?" ou "Como esses sintomas mais afetam sua vida?" Essas perguntas também podem ajudar os provedores a identificar os pacientes que podem se beneficiar mais das intervenções de saúde comportamental.

Perguntar sobre sintomas específicos de ansiedade também pode ajudar os profissionais de gastroenterologia a entenderem e abordar as preocupações do paciente. Por exemplo, entender que os sintomas não indicam necessariamente a presença de um câncer não diagnosticado, ou indicam que a cirurgia é necessária, pode aliviar uma ansiedade significativa e permitir um tratamento direcionado para melhorar a qualidade de vida. Os gastroenterologistas devem mostrar disposição para abordar os aspectos médicos e psicossociais da doença do paciente. Muitos pacientes ficam aliviados ao saber que um diagnóstico de SII ou DF não diminui a expectativa de vida.

Os profissionais de saúde podem entender a perspectiva do paciente sobre seus sintomas fazendo perguntas como: "o que você acha que está causando seus sintomas?" e "o que mais o preocupa com seus sintomas?" O paciente e o profissional devem chegar a um conjunto de expectativas e objetivos compartilhados em relação ao alívio e manejo da dor e continuar a revisá-los e modificá-los conforme necessário à medida que a relação terapêutica se desenvolve. Em geral, entender a experiência do paciente com sua dor e seu impacto no dia a dia permite que os provedores desenvolvam planos de cuidados para abordar as preocupações de forma mais direta e melhorar a qualidade de vida.

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Os profissionais da saúde devem dominar a linguagem amigável para o paciente sobre a patogênese da dor, aproveitando os avanços da neurociência e ciências do comportamento. Os profissionais também devem compreender os contextos psicológicos em que se perpetua a dor.

É fundamental que os pacientes escutem o seguinte de seu profissional de gastroenterologia:

1. A dor crônica por DGBI é real

2. A dor se percebe a partir dos sinais sensoriais que se processam e modulam no cérebro

3. Os fatores periféricos podem gerar um aumento da dor

4. A dor é modificável

Ao contrário da dor aguda, que pode ser vista como informativa ou alarmante por exemplo, plenitude pós-prandial), a crônica é perpetuada por uma interação complexa de impulsos nervosos, que podem não estar relacionados (por exemplo, CAPS) ou desproporcionais ao estímulo sensorial real (por exemplo, plenitude pós-prandial).

Estes impulsos, que se originam no sistema nervoso entérico ou nas vísceras digestivas, ativam uma ampla gama de redes cerebrais perceptivas que amplificam a experiência dolorosa. Além do componente sensorial discriminativo da dor (localização, intensidade), os processos cerebrais de ordem superior podem ser cognitivo-avaliativos (baseados em experiências/expectativas anteriores) e afetivo-motivacionais (desgosto/medo/desejo de agir).

Podemos dizer aos pacientes que essas informações sensoriais podem resultar do aumento da atenção a sensações abdominais inofensivas (ou normais), pois o cérebro continua a procurar ameaças potenciais do intestino, com base na experiência anterior com infecção, lesão ou inflamação (por exemplo, ISS pós-infeccioso ou DF) e, em vez de desligar (regular para baixo) e confiar em sua própria segurança, o cérebro ativa erroneamente processos de ordem superior (e inúteis).

Essa estrutura, extraída do modelo de evitação do medo da dor, ajuda aos profissionais de saúde a explicar por que algumas pessoas sentem mais dor do que outras, apesar de um diagnóstico semelhante, e dá esperança de que uma mudança na abordagem da dor possa melhorar a função.

O contexto em que os pacientes experimentam a dor também é importante. É útil explicar que os fatores que iniciam os problemas (por exemplo, uma infecção, uma cirurgia, um evento estressante) nem sempre são os mesmos que perpetuam o problema. A inflexibilidade psicológica, ou o foco excessivo em uma causa ou solução, é comum nas síndromes de dor crônica e interfere na aceitação da dor e na resposta ao tratamento.

O questionamento sobre a dor por membros do sistema de apoio do paciente (perguntando rotineiramente sobre a condição) ou a presença de comorbidade psicológica, como depressão, ansiedade, estresse pós-traumático ou somatização, também interfere no processamento da experiência.

Pessoas com dor crônica também tendem a exibir comportamentos de hipervigilância, como, por exemplo, verificar se há dor depois de comer ou evacuar. Eles podem evitar atividades que são importantes por medo de desenvolverem sintomas, aumentando o impacto da dor crônica nas funções diárias.

Finalmente, a catastrofização da dor, o processo de superestimar a gravidade da dor junto com sentimentos de desamparo, está associada ao aumento da utilização de cuidados de saúde e ao uso indevido de opioides. Os profissionais de saúde devem evitar envolver-se na catastrofização da dor, evitando a linguagem de que o paciente "não deveria sentir tanta dor" ou continuando a solicitar exames para encontrar a "causa" da dor.

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Não se deve receitar opioides para dor gastrointestinal crônica devido a um transtorno da interação intestino-cérebro. Se os pacientes são direcionados com  esses medicamentos, eles devem ser prescritos de maneira responsável, mediante a colaboração multidisciplinar.

O uso de medicamentos opioides para o tratamento da dor não oncológica está sob grande escrutínio devido aos riscos de transtornos pelo seuuso e mortes relacionadas à overdose. Os gastroenterologistas geralmente consultam pacientes que foram tratados com opioides por um longo período de tempo para sintomas gastrointestinais associados. Infelizmente, nesses pacientes, o uso dos opioides não é incomum, mas é ineficaz e potencialmente prejudicial.

Os pacientes que usam opioides por um longo período de tempo correm o risco de desenvolver a síndrome do intestino narcótico, que geralmente não é reconhecida e ocorre em aproximadamente 6% dessa população. A síndrome é caracterizada por aumentos paradoxais crônicos ou recorrentes da dor abdominal, apesar de doses contínuas ou crescentes de opioides. Está associada a uma deterioração significativa na qualidade de vida. No entanto, pode ser difícil de ser diagnosticada porque seus sintomas se sobrepõem aos da SII e da CAPS. Além disso, pode coexistir e complicar o manejo de pacientes com DGBI dolorosa.

Um alto índice de suspeição é necessário para o diagnóstico de síndrome porque o tratamento continuado com opioides pode levar à piora clínica e à repetição das avaliações médicas. O uso de técnicas para desenvolver uma relação aberta e colaborativa entre paciente e profissional e linguagem amigável para explicar a patogênese da síndrome do intestino narcótico pode ajudar o paciente a aceitar esse distúrbio e colaborar com seu manejo.

Também é importante reconhecer que o tramadol tem um potencial de gerar adição e outros eventos adversos associados a opioides. O tratamento principal é a interrupção dos opioides, se possível, mas abordagens comportamentais e psiquiátricas são necessárias para o manejo de longo prazo e redução da reincidência.

 Os pacientes que já receberam medicamentos opioides podem ser encaminhados a um gastroenterologista. Nessa situação, os provedores de saúde devem prescrever opioides de forma responsável em um ambiente multidisciplinar, com eficácia, efeitos colaterais e potencial de abuso monitorados até que outras formas de controle da dor possam ser implementadas.

O guia dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças para prescrição de opioides para dor crônica é um recurso útil a esse respeito.

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As terapias não farmacológicas devem ser consideradas de forma rotineira como parte do manejo integral da dor e, idealmente, devem ser abordadas desde o princípio do atendimento.

A psicoterapia é um importante recurso da psicologia que promove a intervenção  baseada na evidência que tem se adaptado para abordar a fisiopatologia única associada com a desregulação intestino-cérebro. Podem ser personalizadas em função das necessidades, sintomas e o contexto do paciente. É importante que o gastroenterologista incluía desde o início do atendimento as psicoterapias no tratamento para dor gastrointestinal crônica.

Embora muitos pacientes não precisem desse nível de cuidado, é mais provável que eles adotem essas recomendações quando não sentem que é um último esforço, depois que todas as outras intervenções falharam ou como "punição" por não melhorar com os tratamentos tradicionais . Além disso, essas terapias são geralmente bem toleradas com efeitos colaterais mínimos. Existem alguns tipos de psicoterapia intestinal que demonstraram melhorar especificamente os sintomas dolorosos, e é útil que o gastroenterologista se familiarize com a abordagem, estrutura e objetivos de cada intervenção para aumentar o uso clínico.

A terapia cognitiva é uma psicoterapia breve que foca na remedição dos déficits de habilidade, como a catastrofização da dor, a hipervigilância da dor e a ansiedade visceral através de técnicas como reenquadro cognitivo. Há mais de 30 ensaios controlados randomizados (ECR) que respaldam o usa desta terapia para SII em múltiplas formas de administração.

A terapia de aceitação e compromisso é uma abordagem promissora para a dor gastrointestinal crônica que combina estratégias de aceitação e atenção plena com técnicas de mudança de comportamento para reduzir o sofrimento. Acredita-se que funcione melhorando a flexibilidade psicológica por meio do uso de metáforas, paradoxos e exercícios experimentais projetados para ajudar o paciente a construir uma vida significativa.

Novamente, é importante que o gastroenterologista se familiarize com as psicoterapias intestino-cérebro disponíveis, mas deixe as decisões sobre a escolha do tratamento para o os profissionais de saúde habilitados.

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Os profissionais de saúde devem estar familiarizados com alguns neuromoduladores. Devem  conhecer a dosagem, os efeitos colaterais e os objetivos de cada um e ser capaz de explicar ao paciente por que esses medicamentos são usados ​​para tratar a dor persistente. O sistema nervoso entérico compartilha seu desenvolvimento embriológico com o cérebro e a medula espinhal e, portanto, com seus neurotransmissores e receptores. Esse eixo intestino-cérebro, com seus neurotransmissores norepinefrina, serotoninérgicos e dopaminérgicos, é importante para a função motora intestinal e a sensação visceral. Portanto, drogas que atuam nessas vias também têm efeitos sobre os sintomas gastrointestinais.

Antidepressivos de baixa dosagem, agora chamados de neuromoduladores cerebrais intestinais, são usados ​​no DGBI doloroso porque possuem propriedades modificadoras da dor, além de seus efeitos conhecidos sobre o humor. Esses medicamentos incluem antidepressivos tricíclicos (TCAs), inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRSs), inibidores da recaptação da serotonina-norepinefrina (IRSNs) e outros, como a mirtazapina.

Destes, os ISRS, que atuam apenas nos receptores 5-HT, têm o menor efeito analgésico, e a diretriz da AGA de 2014 sugeriu contra seu uso em pacientes com SII, enquanto a do American College of Gastroenterology de 2021 não fez uma recomendação forte para o tratamento. Em contraste, drogas como TCAs, IRSNs e mirtazapina, que têm efeitos da norepinefrina, têm maiores efeitos sobre a dor. Esses devem ser iniciados com doses baixas e titulados de acordo com a resposta dos sintomas e a tolerabilidade, e os pacientes devem ser informados dos possíveis efeitos colaterais.

Conforme discutido acima, os medicamentos opioides devem ser evitados na DGBI dolorosa, mas a naltrexona em baixas doses pode ter efeitos analgésicos sem efeitos colaterais gastrointestinais. A eficácia dos TCAs e ISRSs foi estudada em vários DGBIs dolorosos, incluindo azia funcional, DF e SII. Um ensaio clínico com imipramina na azia funcional não mostrou nenhum benefício do tratamento ativo, enquanto um ensaio clínico randomizado com citalopram mostrou superioridade sobre o placebo no esôfago hipersensível. Há mais dados para TCAs e ISRSs em DF e ISS.

Os IRSNs foram menos estudados, embora tenha havido um ensaio de venlafaxina na DF que não mostrou nenhum benefício. A evidência na SII é limitada a séries de casos de pacientes que receberam duloxetina. Curiosamente, existem evidências de alta qualidade de que a esse medicamento foi eficaz em outros distúrbios de dor crônica, como fibromialgia e dor lombar.

A mirtazapina foi usada em um pequeno estudo na DF, mas pareceu ter efeitos maiores na saciedade precoce do que na dor epigástrica. Um estudo recente em pacientes com SII com diarreia mostrou melhorias significativas na dor abdominal com mirtazapina. Um ensaio aberto de naltrexona em baixa dose na SII mostrou uma melhora significativa nos dias sem dor.

Conclusões

O manejo da dor crônica no DGBI é desafiante e complexo. Os pacientes podem apresentar comorbidades psiquiátricas coexistentes e uma gama limitada de habilidades de enfrentamento. A atualização da prática clínica apresentou recomendações sobre as melhores práticas para ajudar o manejo dos pacientes através de uma melhor comunicação entre o paciente e o profissional, e uma variedade de abordagens farmacológicas e não farmacológicas.

Desenvolver um relacionamento colaborativo e empático entre o paciente e o profissional pode melhorar a ansiedade, o estado funcional e a qualidade de vida do paciente, ao mesmo tempo que os ajuda  a compreenderem a patologia de sua doença e permite a introdução de terapias adequadas.

Evitar os fármacos opioides é fundamental para prevenir o desenvolvimento de transtornos e a síndrome do intestino narcótico. Nos pacientes que não respondem as terapias mencionadas acima,  deve-se solicitar um encaminhamento a um especialista  em manejo da dor. Em geral, o manejo dos pacientes com DGBI com dor persistente requer abordagens múltiplas para otimizar os resultados do paciente.