Relação entre genética, microbiota e fatores externos

A distinção entre rinite associada à asma e a rinite isolada

Fenótipos clínicos inter-relacionados que se sobrepõem parcialmente no conjunto de interações proteicas no organismo humano

Introdução

Asma (A), rinite (RA) e dermatite atópica (DA) são fenótipos clínicos inter-relacionados que se sobrepõem parcialmente no conjunto de interações proteicas no organismo humano. O conceito de "uma via aérea, uma doença", cunhado há mais de 20 anos, é uma abordagem simplista das ligações entre doenças alérgicas das vias aéreas superiores e inferiores. Devido ao desenvolvimento de novos estudos que abordam suas diferenças, é importante que esse conceito seja reavaliado.

Por isso, Bousquet e colaboradores (2023) realizaram uma revisão para analisar (i) as observações clínicas da Rinite Alérgica e seu Impacto na Asma (ARIA), (ii) novos insights sobre polissensibilização e multimorbidade, (iii) avanços em mHealth para novas definições de fenótipos, (iv) confirmação em estudos epidemiológicos, (v) achados genômicos, (vi) abordagens de tratamento, (vii) novos conceitos sobre o aparecimento de rinite e multimorbidade e (viii) o impacto na microbiota.

Rinite alérgica e seu impacto na asma

Clinicamente, dois fenótipos distintos de rinite alérgica (RA) foram identificados: rinite isolada, afetando cerca de 70-80% dos pacientes, e RA associada à multimorbidade da asma (RA + A), correspondendo em torno de 20–30%.

Estudos demonstraram que a coexistência de eczema, rinite e asma na mesma criança era mais comum do que o esperado, sugerindo que essas doenças compartilhassem mecanismos causais. A sensibilização pelo IgE foi apontada como um possível mecanismo; no entanto, um estudo observou que ela só estaria relacionada em 38% dos pacientes, sugerindo vias causais (genômicas) distintas.

Mono e polissensibilização

Mono e polissensibilização a diferentes alérgenos representam expressões de doenças distintas. Em comparação com a monossensibilização, a polissensibilização foi associada a uma resposta IgE global mais forte, fenótipos de doenças (A e/ou R), sintomas e trajetórias. Sendo assim, parecem ser independentes.

Indivíduos monossensibilizados liberam menos IL-4 no sangue periférico enquanto os polissensibilizados apresentam níveis mais baixos de IgE total e específico e reconhecem menos epítopos de alérgenos individuais. Isso sugeriu que a resposta imune era mais forte no segundo grupo.

Diversos estudos demonstraram que crianças polissensibilizadas apresentam um risco maior de desenvolver asma e rinite do que as monossensibilizadas. Em três estudos, a rinite e os alérgenos foram associadas à asma grave.  Sendo assim, existe uma associação entre a polissensibilização do IgE e asma, rinite e DA, incluindo idade de início, número de multimorbidades alérgicas (como conjuntivite e dermatite atópica), gravidade da doença, nível de eosinófilos e níveis totais de IgE.

Ademais, alguns estudos demonstraram que pacientes com rinite isolada apresentaram menos sensibilizações do que aqueles com A + RA, que no geral, estão associados à polissensibilização. Em relação à conjuntivite, diversos estudos demonstraram que os sintomas oculares foram mais comuns na multimorbidade do que na rinite isolada, independente da asma.

A idade de início e a alergia dos pais sugeriram que a multimorbidade comporta-se de forma diferente da rinite ou da asma isoladamente. Estudos demonstraram que a idade de início de rinite ou asma foi cerca de 10 anos mais cedo em A + RA do que em doenças isoladas. Ademais, uma história familiar alérgica foi um preditor mais forte de A + RA do que entidades alérgicas isoladas.

Trajetórias de sensibilização por IgE desde a infância até a vida adulta mostram um aumento de polissensibilização. No entanto, uma vez que a doença esteja totalmente estabelecida (adolescentes), a sensibilização permanece estável.

Estudos epidemiológicos demonstraram que as conexões entre asma e rinite existem independentemente da sensibilização por IgE.

Sendo assim, esses dados confirmaram que a multimorbidade se comporta de maneira diferente em relação a RA ou A isoladamente

Relações entre polissensibilização e multimorbidade alérgica

Existe uma associação entre polissensibilização por IgE e multimorbidade, incluindo idade de início, número de multimorbidades alérgicas (conjuntivite e DA), gravidade da doença, níveis de eosinófilos e níveis totais de IgE.

Alergia alimentar

Não há uma homogeneidade na apresentação das alergias alimentares ao longo da vida. A gravidade e persistência dos sintomas, também variam, na dependência dos padrões de sensibilização.

Marcha atópica

A marcha atópica, usualmente interpretada como o desenvolvimento dos sintomas desde a DA na infância para a A, e então AR, não apresenta uma homogeneidade na apresentação das alergias alimentares ao longo da vida. A gravidade e persistência dos sintomas, também variam, na dependência dos padrões de sensibilização.

Inflamação perieptelial, barreiras epteliais permeáveis e multimorbidades

A multimorbidade alérgica às vezes está associada à multimorbidades autoimunes, metabólicas e neuropsiquiátricas, sugerindo mecanismos moleculares comuns. Essa relação não pode ser explicada apenas por fatores genéticos. No primeiro grupo do fenótipo multimórbido, o tecido epitelial local do órgão afetado está inflamado. O segundo grupo, que consiste em doenças como diabetes e artrite reumatóide, está associado com defeito da barreira epitelial intestinal ou pulmonar. A patogênese das doenças de ambos os grupos foi associada com dano à barreira epitelial e inflamação periepitelial.

Figura 1: Importância da barreira epitelial na multimorbidade. Traduzido e adaptada de Bousquet e colaboradores (2022).

Descoberta de novos fenótipos alérgicos multimórbidos usando dados de saúde

Para compreender a dinâmica diária dos sintomas das multimorbidades alérgicas e seu impacto no trabalho, Bousquet e colaboladores (2018) desenvolveram um aplicativo de mHealth, o MASK-Air. O estudo, que durou um ano, avaliou 4.210 pacientes. No total, cinco escavas visuais analógicas avaliaram a carga diária da doença (ou seja, avaliação global, nariz, olhos, asma e trabalho). Níveis <20/100 foram categorizados como sobrecarga "Baixa" e VAS ≥50/100 como "Alta". Os pesquisadores definiram quatro padrões. Nos portadores de RA, dificilmente houve padrões de Asma Alta-Rinite Baixa ou Conjuntivite Alta-Rinite Baixa. Por outro lado, muitos participantes relataram dias com rinite alta sem asma. A asma alta-rinite alta e conjuntivite alta-rinite alta (VAS global medida≥50/100) foi encontrada em 2,9% dias. Sendo assim, concluiu-se que existe um fenótipo alérgico extremo (asma + AR + Conjuntivite) com maior impacto nos sintomas e produtividade no trabalho do que nas doenças individuais, porém que afeta poucos pacientes.

As hipóteses geradas a partir dos dados obtidos pelo mHealth precisam de validação por estudos epidemiológicos.

Tecnologias OMICS focada em multimorbidades alérgicas e polissensibilização

As tecnologias ômicas, trazidas pela biologia de sistemas, são ferramentas valiosas para análises abrangentes.

Mecanismos de multimorbidade foram investigados em nível molecular, identificando proteínas e processos celulares. A asma, rinite e dermatite atópica compartilham um número maior de proteínas associadas do que o esperado por acaso. Nos eosinófilos, as vias de sinalização de T2 representaram um mecanismo relevante da multimorbidade, incluindo IL-4 e TSLP (linfopoietina estromal tímica), bem como IL1R1- e vias relacionadas ao GATA3. Em tipos celulares não eosinofílicos, IL-13, LRRC32/C11orf30 e PLA2G7 foram associados com A + RA + DA. No entanto, a IL-33 foi associado com asma e DA, mas não apenas com AR.

O estudo MeDALL demonstrou que oito genes (IL-5/JAK/STAT e IL33/ST2/IRAK/TRAF121) associados à eosinófilos foram altamente expressos em indivíduos com DA + RA + A. No entanto, o estudo não identificou os genes associados apenas a asma ou dermatite atópica. A rinite isolada estava associada principalmente a vias de sinalização mediadas por receptores Toll-like (TLR), IL-17 e MyD88 (resposta primária de diferenciação mielóide 88). O IL33 /IL1RL1, TSLP, IL-13-RAD50, C11orf30/LRRC32 e genes de alergia parecem estar relacionados à A + RA. Sendo assim, estudos de polimorfismo genético suportam resultados de multimorbidade.

Impacto terapêutico na multimorbidade

Participantes com A + RA apresentaram sintomas mais graves do que aqueles com rinite isolada. Além disso, eles relataram com mais frequência um tratamento com corticosteroides intranasais e os anti-histamínicos orais, que foram associados a um controle ruim. No MASK- air, um padrão de co-medicação foi associado a um pior controle da rinite do que em monoterapia.

A hipótese ARIA-MEDALL

Conforme proposto no MeDALL, a figura 2 ilustra as oito trajetórias de doença alérgica que foram hipotetizadas.

FIGURA 2: Fenótipos das doenças alérgicas mediadas por Ig-E ao longo do ciclo de vida. Adaptada de Bousquet e colaboradores (2022).

Em uma pequena parcela de bebês seguindo a marcha atópica, há uma persistência da sinalização fetal de T2. O IL-33 e IL-9 são superexpressos nesses lactantes. Em torno de três meses após o nascimento, ocorre a janela de risco alérgico. A recorrência ou expansão da sinalização T2 pode estar associada a vários mecanismos, como poluentes do ar, vírus e disfunções da barreira cutânea, nos quais a IL-33 parece desempenhar um papel significativo. A rinite sozinha não está associada a genes T2, mas a TLRs e IL-17. Os alérgenos podem ativar os TLRs que, por sua vez, ativam o ILC2.

 Em pacientes asmáticos, o número de ILC2 no sangue é aumentado em mulheres em comparação com homens. Os andrógenos regulam negativamente a homeostase de ILC2, limitando sua capacidade de expandir em resposta a IL 33. A sinalização de estrogênio aumenta a liberação de IL-33 induzida por alérgenos, a produção de citocinas ILC2 e a inflamação das vias aéreas. A sinalização do receptor androgênico reduz a liberação de IL-33 das células epiteliais brônquicas, sugerindo um regulador negativo da inflamação alérgica das vias aéreas. Esses dois mecanismos podem explicar a predileção feminina pós-púbere de multimorbidade.

Doenças alérgicas podem se desenvolver em adultos. A sensibilização por IgE também pode estar associada a cofatores, como pólen, e geralmente, não estão associadas à histórico familiar.

"Uma via aérea-uma doença"

Embora muitas vias possam estar envolvidas na diferenciação de rinite isolada versus A + AR, Bousquet e colaboradores (2022) concentraram a hipótese nos primeiros sinais envolvidos quando os pacientes entram em contato com os alérgenos.

Dados clínicos, estudos epidemiológicos, estudos baseados em mHealth e abordagens genômicas confirmam a existência de duas doenças distintas: Rinite isolada e Rinite + Asma. No entanto, ambas doenças precisam ser refinadas como conjuntivite e (em crianças) alergia alimentar e DA podem ser consideradas como multimorbidades independentes.

Assim, o conceito “doença alérgica multimórbida” é mais apropriado do que “uma via aérea, uma doença”.

Diversos estudos sugeriram que a proteção contra multimorbidade pode estar relacionada à influência da microbiota no sistema imunológico. O IL-33 interage com a microbiota intestinal e respiratória, mas, dependendo do contexto fisiológico, pode ser protetor do hospedeiro ou patogênica. Ademais, o MyD88 também é fortemente influenciado pela microbiota e pode ser um mecanismo importante para explicar doenças distintas.

O IL-17 é produzida em baixas quantidades em resposta à microbiota residente benéfica e desempenha um papel protetor. Quando há a desregulação da microbiota, o IL-17 torna-se patogênico e interage com TLRs e outros mecanismos. No caso da rinite, há produção de IgE para um número relativamente pequeno de alérgenos. É provável que cofatores (por exemplo, infecções virais) possam desempenhar um papel no início da doença. A doença geralmente ocorre após a infância.

Quando o desequilíbrio da microbiota ocorre, a via de IL-33 é ativada e, em indivíduos geneticamente suscetíveis, há multimorbidade e polissensibilização. Essa ativação pode ocorrer logo após o nascimento (marcha atópica) ou mais tarde na primeira infância (recorrência da sinalização T2) associada a vírus, Staphylococcus aureus, poluentes ou componentes não alergênicos de alérgenos.

Figura 3: Interações supostas com a microbiota. Adaptada de Bousquet e colaboradores (2022).

Conclusão

Em conclusão, a rinite isolada (doença local) e a rinite com multimorbidade da asma (doença sistêmica) representam duas doenças distintas com diferenças no histórico genético, nos padrões de sensibilização alergênica, na gravidade dos sintomas e na resposta ao tratamento. Para estudos mecanísticos, biológicos, genéticos e clínicos, as duas doenças precisam ser estudadas separadamente. A microbiota parece desempenhar um papel fundamental no aparecimento das duas doenças, no entanto, mais pesquisas são necessárias para explorar ainda mais a solidez desse conceito.