Dr. Arturo Cagide

Insuficiência cardíaca descompensada

Um guia para orientar a prática clínica

Autor/a: Dr. Arturo Cagide

Da epidemiologia à fisiopatologia e quadro clínico
  • A síndrome da insuficiência cardíaca (IC) é definida por congestão e hipoperfusão. Na IC aguda (ICA) a congestão é a condição usual, com ou sem graus variados de comprometimento da perfusão. Por sua vez, embora a congestão possa acometer ambos os territórios, costuma predominar apenas um deles, pulmonar ou sistêmico.
  • Aproximadamente 50% dos pacientes com ICA apresentam fração de ejeção reduzida (EF red.); os restantes mantem a fração de ejeção preservada (FE pré.). A coexistência de comorbidades é determinante na evolução e prognóstico. A prevalência de ambas as condições depende da população tratada, predominando a FE pré. em centros de saúde que atendem preferencialmente idosos.
  • A ICA com FE pré. caracteriza-se por congestão pulmonar, geralmente sem queda óbvia da perfusão. A mortalidade por todas as causas é semelhante à da FE red., mas com menor proporção de doenças cardiovasculares e maior por comorbidades; a idade é aproximadamente 10 a 15 anos maior que uma em relação à outra.
  • Dentre os pacientes com fração de ejeção preservada, o clínico deve pensar em diagnósticos diferenciais: doença cardíaca hipertensiva, doença de depósito e cardiomiopatia hipertrófica.
  • No ICA com FE reduzida predomina-se a doença coronariana, principalmente história de infarto do miocárdio, seguida de miocardiopatia dilatada de etiologia não isquêmica.
  • O diagnóstico de ICA é clínico, baseado em sintomas e sinais. O teste de BNP é útil na confirmação da falência hemodinâmica, no entanto, deve-se lembrar que esse tem menor sensibilidade em certas condições como ICA com FE pré., na regurgitação mitral aguda e nos obesos.
  • No choque cardiogênico, a queda da perfusão é crítica, com acidose lática e disfunção tecidual; graus menores de hipoperfusão são expressos por pressão arterial sistólica inferior a 90 mm Hg, taquicardia, oligúria e frieza da pele. Em outras palavras, a hipoperfusão é contínua, desde graus leves e subclínicos até o choque cardiogênico definitivo.
  • A interpretação fisiopatológica da ICA é de primordial importância para a implementação da estratégia terapêutica, mas as decisões são baseadas principalmente no ajuste de alguns parâmetros clínicos e hemodinâmicos.

- Pressão arterial e frequência cardíaca.

- Sinais de congestão pulmonar e sistêmica, perfusão da pele, diurese.

- Saturação arterial de O2, ácido lático e PH.

- FE (por ecocardiografia).

- Variáveis ​​hemodinâmicas (pressões venosas central e pulmonar, volume minuto/ e saturação venosa mista de O2).

Outros parâmetros, como volume diastólico final e FE do ventrículo direito, ou aqueles resultantes de uma combinação dos anteriores, são de valor secundário.

Progressão ou condição associada

A ICA pode ser consequência de um processo recém-instalado ou resultado da descompensação de uma falha crônica da bomba. A correta interpretação do quadro é fundamental do ponto de vista do tratamento, prognóstico e, principalmente, em relação à prevenção.

Entre os fatores associados à instalação recente, podem ser mencionados:

- Suspensão ou redução de tratamento específico para falha de bomba.

- Síndrome coronariana aguda.

- Arritmias (bradicardia extrema ou taquicardia de alta frequência).

- Hipertensão arterial.

- Uso excessivo de anti-inflamatórios (corticosteróides/AINEs).

- Miocardite aguda.

- Infecções / anemia / hipertireoidismo - hipotireoidismo.

Dentre os defeitos valvulares como etiologia da ICA, destacam-se a endocardite, a ruptura de cordas tendíneas da valva mitral, espontânea ou por endocardite, e a trombose aguda de próteses valvares. Entre os diagnósticos diferenciais, ressalta-se a embolia pulmonar, condição a ser considerada como possível etiologia no caso de desconforto respiratório de início súbito.

Monitorização, hemodinâmica e ecodoppler

O uso da monitorização hemodinâmica varia em diferentes centros, mas em geral sua indicação não é sistemática, ficando restrita à interpretação pouco clara do quadro clínico na admissão ou quando a resposta à intervenção instrumentada é inadequada.

O ecodoppler é fundamental no diagnóstico de defeitos valvares, derrame pericárdico e na estimativa da função ventricular.

Em geral, existe uma boa relação entre as variáveis ​​hemodinâmicas e a fração de ejeção estimada pelo ecocardiograma. No entanto, em certas condições, observa-se uma incompatibilidade entre a hemodinâmica e o ecodoppler, como, por exemplo, nos casos de ventrículo esquerdo sem ou com dilatação mínima, como na FE pré-IC em geral e na miocardite aguda. Sendo a FE a razão entre o volume sistólico e o volume diastólico final, uma vez que este último é normal, pequenas diminuições no encurtamento reduzem significativamente o volume sistólico e, com isso, o débito cardíaco. Ademais, a menor complacência aumenta significativamente as pressões diastólica e pulmonar sem dilatação da câmara ventricular.

Embora ecodoppler, tomografia computadorizada e ressonância magnética sejam fundamentais no diagnóstico de patologias pericárdicas, sua repercussão funcional às vezes requer registro hemodinâmico.

Por fim, a coexistência de insuficiência cardíaca com vasodilatação arterial secundária a inflamação (infecciosa ou de outra causa) definida como insuficiência mista pode estar associada a achados hemodinâmicos pseudonormais na presença de importante disfunção tecidual.

Continuidade do tratamento

Esse tópico refere-se à recomendação das diretrizes para manter o tratamento da IC crônica na fase descompensada da insuficiência cardíaca.

O tratamento em questão baseia-se:

  • Bloqueio neuro-hormonal
  • Bloqueio beta
  • Bloqueio de espironolactona
  • Inibidores de SGLT2

A base para essa recomendação é o achado de estudos observacionais que demonstraram que o prognóstico da ICA era substancialmente melhor quando o tratamento não era suspenso.

Deve-se notar que ocorreu um viés estatístico nessas análises retrospectivas: muitos dos pacientes nos quais o tratamento foi descontinuado poderiam ter piorado a condição hemodinâmica com hipotensão arterial ou necessidade de inotrópicos. Em outras palavras, talvez a continuidade tenha gerado uma seleção populacional favorável associada a um melhor prognóstico. Além dessa consideração, em princípio o "tratamento crônico" deve ser mantido ou, na falta dele, reduzido ao máximo.

Evidências e tratamento farmacológico

Ao contrário da IC crônica, na ICA a evidência é limitada e fragmentária. Em geral, baseiam-se na recomendação de especialistas, experiências pessoais e institucionais, bem como interpretações fisiopatológicas. O tratamento com drogas vasodilatadoras, com efeito venoso/arterial predominante, fora do quadro de hipertensão arterial grave, não é relevante.

Os fármacos que possuem efeito exclusivamente vasoconstritor (vasopressina, por exemplo) não têm indicação no choque cardiogênico associado ao aumento da resistência sistêmica, pois, embora sustentem a pressão arterial, reduzem significativamente o débito cardíaco. Seu uso generalizado em terapia intensiva é consequência do fato de que a hipotensão nesse cenário, na maioria das vezes, está associada à vasodilatação extrema e ao alto volume minuto característicos do quadro infeccioso.

Entretanto, no cenário da unidade coronariana é preferível tratar a hipotensão com drogas de duplo efeito, vasoconstritoras e inotrópicas.

Casos com choque misto, insuficiência contrátil associada à vasodilatação arteriolar constituem uma situação particular. Exemplos dessas condições são a conjunção de sepse com deterioração da função cardíaca ou o pós-operatório de cirurgia cardiovascular. No entanto, mesmo nesses casos e como regra geral, drogas vasoconstritoras sem efeito contrátil não devem ser usadas em pacientes com débito cardíaco inferior a 5 l/min ou seu índice cardíaco correspondente.

Balanço negativo e janela de tempo

Normalmente a resposta ao tratamento diurético induz um balanço negativo que se associa a um alívio significativo e imediato da congestão, dos sinais pulmonares e/ou sistémicos. A assistência ventilatória não invasiva complementa a intervenção farmacológica.

Mas em certos casos, se a resposta for intensa, pode ocorrer contração intravascular, pois o volume do espaço intersticial não é recuperado simultaneamente. A veia cava que permite estimar a pressão venosa central (> 20 mm sugere pressão venosa central > 15 mm Hg) será colapsada nesses casos (< 5 mm).

Trata-se de uma hipovolemia relativa e transitória que pode induzir insuficiência renal com hipotensão e elevação da creatinina na presença de congestão intersticial, pulmonar e/ou sistêmica ("janela temporária") Se o quadro não for interpretado corretamente, o balanço negativo pode ser limitado sem ter atingido o quadro de euvolemia, com a consequência de considerar outros diagnósticos diferenciais como causa do quadro, por exemplo, doença pulmonar entre outras.

A estratégia deve visar a desacelerar o balanço negativo para permitir a recuperação do volume intravascular.

As considerações acima se aplicam à ultrafiltração. Dada a falta de resposta ao tratamento diurético (fursemida e sua combinação com outros diuréticos), este procedimento é precisamente indicado, mas deve ser estendido ao longo do tempo com uma estratégia diferenciada em relação à diálise crônica.

Ventrículo direito e sua pré-carga

A insuficiência do ventrículo direito (VD) expressa por dilatação e redução da fração de ejeção deve-se, na maioria das vezes, à elevação de sua pós-carga (hipertensão pulmonar), condição frequente na ICA, sendo o balanço negativo a estratégia usual.

A exceção é o infarto do VD com dilatação e falha contrátil genuína na presença de pulmões limpos. Nesse caso, a manutenção de uma pré-carga elevada melhora a hipotensão e o restante das variáveis ​​hemodinâmicas até a recuperação da função.

Um cenário semelhante é a embolia pulmonar com descompensação hemodinâmica em que também é necessário aumentar o volume do VD.

No entanto, o transplante cardíaco é um cenário particular, pois um certo aumento da resistência pulmonar coexiste com o VD de dimensões normais, não adaptado a essa sobrecarga de pressão. Nessas condições, a expansão não deve atingir uma pressão atrial direita muito elevada, pois isso pode estar associado à claudicação do VD com maior deterioração hemodinâmica. Portanto, a pressão venosa central deve ser mantida em uma faixa que não ultrapasse 15-16 mm Hg, pois a hiperdistensão da câmara ventricular pode levar à queda da contração devido à alta pós-carga (fase descendente da curva de Starling). Essa é a base para a manutenção da frequência cardíaca em uma faixa próxima a 120 no pós-operatório imediato de transplante cardíaco.

A embolia pulmonar com falência hemodinâmica é uma condição semelhante, sobrecarga aguda com VD não dilatado em que, como previsto, uma pré-carga alta deve ser mantida, mas dentro de uma faixa limitada.

Condição associada, causa ou consequência?

Às vezes, a condição associada leva à seguinte pergunta, por exemplo: a ICA é uma consequência da arritmia ou a arritmia desencadeia a falha da bomba? Uma abordagem semelhante ocorre com a isquemia miocárdica. A provável sequência temporal nem sempre nos permite esclarecer a questão.

É mais importante considerar este cenário como uma causalidade reversa ou processo de feedback positivo em que o gatilho inicial e sua consequência interagem, não apenas para perpetuar a condição, mas também como gatilho para futuros desequilíbrios. A partir dessa interpretação, a estratégia deve ser voltada não apenas para o tratamento da ICA, mas também para a resolução do fator associado, mesmo quando considerado como ator secundário.

Cardiopatia estrutural e taquicardiopatia

A arritmia supraventricular, particularmente a fibrilação atrial (FA), é uma complicação comum da ICA secundária à doença miocárdica, qualquer que seja sua origem, primária, isquêmica ou valvular. A taquicardiopatia, por sua vez, é um déficit contrátil secundário a frequência cardíaca elevada de algum tempo de evolução, sem base estrutural e com recuperação ad integrum da função algum tempo após a normalização do ritmo.

Por outras palavras, conclui-se que se trata de duas entidades com identidade própria, cada uma com uma estratégia particular: compensação da ICA com posterior enfoque na arritmia como tratamento etiológico da falha contráctil no caso de taquicardiopatia, ou compensação e provável abordagem secundária para a arritmia considerada como uma complicação da falha da bomba.

Às vezes, o diagnóstico diferencial com base na sequência temporal mencionada acima é difícil, portanto, é preferível concluir que se trata de um continuum entre a insuficiência contrátil e a frequência cardíaca com um mecanismo de feedback positivo como condição subjacente.

Nessa perspectiva, o controle do ritmo constitui um componente fundamental do tratamento da IC. Se a superioridade do controle do ritmo sobre o controle da frequência ainda não foi demonstrada de forma conclusiva, provavelmente isso se deve ao fato de que os estudos randomizados incluíram uma seleção adversa da população que incluía pacientes com arritmias de longa duração. O constante progresso das técnicas de ablação coloca este procedimento como a indicação sistemática a considerar num futuro próximo.

Assistência mecânica (ECMO) na ICA

A assistência circulatória com oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO) é o procedimento de escolha em nosso meio para suporte mecânico temporário de falha grave de bomba com choque cardiogênico. De fato, outros equipamentos são de difícil implantação em nosso meio devido ao alto custo para o sistema de saúde.

Apesar de ser uma prática que exige elevada especialização, em geral, o cardiologista e o terapeuta intensivista têm um papel central na indicação do procedimento e na monitorização de variáveis ​​clínicas que devem ser precisamente ajustadas para o seu sucesso. Na insuficiência circulatória, a ECMO é com conexão veno-arterial, geralmente femoro-femoral (eventual veno-axilar) que permite a assistência biventricular.

Dois aspectos são de primordial importância para o sucesso da intervenção:

O primeiro refere-se à oxigenação cerebral. Com algum grau de função contrátil residual, a perfusão cerebral pode depender da contração ventricular esquerda. Nestas circunstâncias e se existisse dificuldade respiratória como condição associada, a perfusão seria com sangue parcialmente saturado (síndrome de Harlequin), com o consequente dano neurológico. É fundamental monitorar a saturação no braço direito, expressão do sangue ejetado pelo ventrículo esquerdo (e com ele da saturação cerebral), pois a saturação do braço esquerdo pode receber perfusão retrógrada de ECMO com saturação ótima através da membrana oxigenadora.

Esta complicação pode ocorrer se por engano no caso de ECMO veno-arterial com função VE residual, o ventilador for programado com "ventilação protetora" por se tratar de um paciente com patologia respiratória associada considerando que a saturação é assegurada pelo equipamento.

O segundo aspecto refere-se à descarga do ventrículo esquerdo. A ECMO com retorno de sangue ao circuito arterial aumenta a pós-carga ventricular, impossibilitando a redução do volume da câmara e aliviando a congestão pulmonar, condições negativas para recuperação de danos miocárdicos e respiratórios nos casos em que a indicação é assistencial. Esta situação é diagnosticada pela monitorização da pressão capilar pulmonar e dos volumes do VE por ecocardiografia.

Uma estratégia possível é a bomba de balão, embora sua eficácia seja limitada. Mais eficaz é a drenagem das câmaras esquerdas (átrio ou ventrículo) por meio de uma segunda cânula arterial, manobra que aumenta a complexidade, mas pode reverter uma condição limitante na eficácia da ECMO.

Prevenção de reinternação precoce

Embora o provável motivo da readmissão precoce seja a gravidade da IC, não raras vezes se deve ao fato de que na alta hospitalar o paciente encontra-se parcialmente compensado por não ter atingido o estado de euvolemia.

Além disso, uma porcentagem significativa de casos requer a administração de diuréticos pós-compensação, mesmo em condições de euvolemia, principalmente em pacientes com vários episódios anteriores de internação. No entanto, talvez a causa mais frequente seja administrativa.

Estudos observacionais demonstraram que a reinternação nos primeiros 15 dias após a alta hospitalar por episódio de ICA está fortemente associada ao atraso na primeira consulta ambulatorial. A causa pode estar ligada a:

  • Suspensão da medicação de alta quando as indicações não forem corretamente interpretadas pelo paciente e/ou familiares.
  • Polifarmácia com prováveis ​​interações decorrentes das novas indicações com medicamentos não cardiológicos.
  • Indisponibilidade de tratamento devido a falhas do sistema de saúde.

A estratégia não exige ambulatório especializado em IC como condição essencial. É necessário um agendamento sistemático de consulta na alta com um profissional que tenha todas as informações sobre o episódio de ICA e que possa interagir eventualmente com o médico que o atendeu durante a internação. Nesta consulta você deve:

  • Consolidar e/ou ajustar as indicações médicas na alta; não raramente é necessário aumentar as doses de bloqueio neuro-hormonal e betabloqueador ou reduzir a dose de diuréticos.
  • Esclarecer dúvidas quanto ao seguimento posterior.

Após esta primeira consulta, o doente pode ser encaminhado para o seu médico de família ou eventualmente para um especialista em IC. A estratégia é tão simples quanto oferecer acessibilidade para manter a continuidade do tratamento. O problema é que o simples às vezes é difícil de implementar.


Dr. Arturo Cagide é chefe do Instituto de Medicina Cardiovascular do Hospital Italiano de Buenos Aires.