Revisão sistemática

Intervenções dietéticas e nutricionais em crianças com paralisia cerebral

Revisão sobre o efeito de intervenções nutricionais e dietéticas nos resultados clínicos, nutricionais e de neurodesenvolvimento de crianças com paralisia cerebral

Autor/a: Fernanda Rebelo, Isabela Rodrigues Mansur, Teresa Cristina Miglioli, Maria Dalva Baker Meio, Saint Clair Gomes Junior

Fuente: PLoS ONE 17(7): e0271993

Introdução

A paralisia cerebral (encefalopatia crônica não progressiva) é uma lesão cerebral extremamente grave e incapacitante e compreende um grupo de desordens permanentes e não progressivas do movimento e postura secundárias a lesão, disfunção ou dano ao desenvolvimento do cérebro fetal ou infantil.

Esses distúrbios motores são acompanhados por alterações sensoriais, alterações na percepção, cognição, comunicação e comportamento, epilepsia, problemas musculoesqueléticos e comorbidades importantes que incluem problemas nutricionais, como baixo peso, refluxo gastroesofágico, constipação e deficiências de micro e macronutrientes.

A influência da nutrição é reconhecida nas alterações do funcionamento do corpo humano, tanto na cadeia causal das doenças como na modificação das respostas em doenças já estabelecidas. A utilização de fórmulas enterais ou a adição de fibras, probióticos, prebióticos, lipídios ou ácidos graxos na dieta pode atuar como adjuvante no tratamento das comorbidades supracitadas. Portanto, intervenções nutricionais podem melhorar a qualidade de vida de pacientes com paralisia cerebral.

A identificação de intervenções dietéticas ou nutricionais com bons resultados para o tratamento de distúrbios comuns em crianças com paralisia cerebral, com alto nível de evidência científica, é importante para a construção de protocolos e para a orientação da prática baseada em evidências. Com isso, Rebelo e colaboradores (2022) realizaram uma revisão sistemática como objetivo de sintetizar os resultados de ensaios clínicos randomizados avaliando o efeito dessas intervenções sobre os resultados clínicos, nutricionais e de neurodesenvolvimento de crianças com paralisia cerebral.

Resultados

No total, quinze estudos preencheram todos os critérios de elegibilidade e foram selecionados para a revisão sistemática.

Considerando os principais desfechos investigados, os estudos foram classificados em 5 grupos: (1) taxa de esvaziamento gástrico, refluxo gastroesofágico (RGE) e sintomas relacionados; (2) concentração plasmática de 25-hidroxivitamina D; (3) medidas antropométricas e estado nutricional; (4) constipação e características das fezes; e (5) outros desfechos avaliados por um único estudo.

O grupo de estudos com resultados de esvaziamento gástrico, refluxo gastroesofágico (RGE) e sintomas relacionados compreendeu 6 artigos. Cinco dos seis estudos foram ensaios cruzados que modificaram a fonte de proteína em fórmulas enterais, comparando diferentes proporções de soro de leite e caseína. Fórmulas com maiores proporções de soro parecem acelerar o esvaziamento gástrico, contribuindo para a redução do RGE e diminuição das náuseas e ânsia de vômito.

No entanto, um estudo encontrou escores de dor mais altos em crianças que receberam 100% de fórmula de soro de leite do que naquelas que receberam 50% de soro de leite e 50% de caseína, enquanto outro estudo relatou uma associação entre esvaziamento gástrico rápido e sintomas pós-prandiais, como náusea, diarreia, sudorese e ânsia de vômito. Um estudo que avaliou o uso de fórmulas enterais com alta ou baixa pectina por 4 semanas, encontrou uma redução do RGE em comparação com uma fórmula sem pectina.

Dois estudos investigaram o efeito da suplementação de vitamina D na concentração plasmática de 25-hidroxivitamina D em um total de 63 participantes com idades entre 6 e 18 anos. LeRoy e colaboradores (2015) avaliaram uma dose oral única de 100.000 UI em comparação com placebo. Kilpinen-Loisa e colaboradores (2017) investigaram uma dose oral de 1.000 UI, 5 dias/semana por 10 semanas em comparação com um grupo observacional (sem placebo). Ambos os estudos encontraram melhorias nas concentrações plasmáticas de 25-hidroxi-vitamina D em crianças que receberam intervenção em comparação com grupos de controle. Além disso, as intervenções não foram associadas com hipercalcemia ou qualquer outro efeito adverso. O segundo estudo também investigou os níveis de cálcio, fosfato, hormônio da paratireoide e marcadores de formação e reabsorção óssea (fosfatase alcalina, propeptídeo sérico amino-terminal do procolágeno tipo I e telopeptídeo do colágeno tipo I), mas não encontrando diferenças significativas entre os dois grupos.

Dois estudos avaliaram medidas antropométricas e estado nutricional em 24 participantes. Um estudo incluiu apenas crianças menores de 5 anos e o outro incluiu indivíduos entre 2,8 e 15,8 anos. Sevilha Paz Soldan e colaboradores (2018) investigaram a suplementação com uma mistura de lipídios (coco 35%, azeitona 35%, peixe 15%, soja 15%) por 6 meses. Enquanto Patrick e colaboradores (1986) avaliaram uma dieta rica em energia por 5 semanas. Ambas as intervenções resultaram em uma melhora significativa nas medidas antropométricas. Além disso, a mistura lipídica foi associada a um melhor perfil lipídico e desenvolvimento psicomotor ao final da intervenção em relação ao grupo controle.

Dois estudos aplicaram intervenções para melhorar a constipação e as características das fezes em 136 participantes de 1 a 12 anos. Garcia-Contreras e colaboradores (2020) avaliaram a suplementação de 28 dias com probióticos, simbióticos ou prebióticos em comparação com placebo. Hassanein e colaboradores (2021) estudaram a suplementação com solução oral de sulfato de magnésio por 1 mês em comparação com placebo. Ambos os estudos encontraram resultados positivos de suas intervenções, com melhorias na consistência e frequência das fezes.

Três estudos avaliaram outros desfechos. Com o objetivo de melhorar a função motora grossa, Leal-Martínez e colaboradores (2020) compararam um sistema de suporte nutricional com a dieta preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e um grupo observacional de pacientes de 4 a 12 anos. Eles observaram desempenho motor superior no grupo intervenção após 7 e 13 semanas, especialmente para os parâmetros de marcha.

Omar e colaboradores (2021) estudaram tratamento com lactoferrina vs. complexo hidróxido de ferro polimaltosado para anemia ferropriva em crianças de 1 a 10 anos por 4 semanas. Os biomarcadores de anemia melhoraram em ambos os grupos, mas a variação de hemoglobina e ferritina foi maior no grupo lactoferrina, com menor incidência de constipação como efeito adverso.

O estudo de Mlinda e colaboradores (2018) investigaram se uma intervenção educativa poderia melhorar as habilidades de alimentação. Realizou-se educação nutricional grupal e individual, treinamento dos cuidadores sobre posicionamento durante a alimentação e terapia ocupacional. Os cuidadores do grupo de intervenção relataram melhorias significativas nas habilidades, posicionamento, velocidade de alimentação, envolvimento da criança durante a alimentação e interação criança-cuidador, além de menos estresse e melhor humor da criança durante a alimentação.

Os resultados devem ser interpretados com cautela, pois o risco geral de viés foi alto para a maioria dos estudos. Mais de 40% dos estudos estavam em alto risco de viés ou preocupações em três dos cinco domínios avaliados: viés durante o processo de randomização, viés devido a desvios das intervenções pretendidas e viés na seleção dos resultados do relatório.

Discussão

O estudo de Rebelo e colaboradores (2022) sintetizou os resultados e avaliou o risco de viés em estudos que investigam intervenções dietéticas e nutricionais sobre desfechos clínicos, nutricionais e de neurodesenvolvimento em crianças com paralisia cerebral.

As intervenções e os resultados variaram entre os estudos incluídos e podem ser resumidos da seguinte forma: fórmulas enterais enriquecidas com pectina ou à base de soro de leite para RGE; suplementos de 25-hidroxivitamina D para hipovitaminose D; suplementação com lipídios mistos ou dieta de alta densidade energética para melhorar as medidas antropométricas; suplementação com probióticos, prebióticos, simbióticos ou magnésio para constipação; sistema de suporte nutricional para função motora grossa; lactoferrina ou hidróxido de ferro polimaltosado para anemia ferropriva; e intervenção educativa para melhorar as habilidades de alimentação.

Todos os estudos encontraram resultados positivos e não relataram eventos adversos importantes. No entanto, a evidência é fraca, pois poucos estudos foram realizados e o risco de viés foi alto.

Em estudos que investigaram o esvaziamento gástrico, aqueles com maior proporção de participantes de fundoplicatura observaram mais efeitos colaterais relacionados ao esvaziamento gástrico mais rápido. A fundoplicatura é uma cirurgia antirrefluxo conhecida por acelerar o esvaziamento gástrico e pode causar a síndrome de dumping como efeito adverso. Portanto, o esvaziamento gástrico mais rápido em crianças com fundoplicatura pode ser um resultado indesejável, levando a problemas gastrointestinais.

Os dois estudos que avaliaram a suplementação de vitamina D foram realizados em cidades com baixa incidência solar, Santiago do Chile e Helsinque. A dose de suplementos de vitamina D para atingir concentrações plasmáticas adequadas pode variar de acordo com a localização geográfica, sendo menor para locais próximos ao equador que apresentam maior incidência solar.

Em relação ao uso de sulfato de magnésio como intervenção para constipação, os dados de segurança após tratamento prolongado por um ano não foram avaliados. A hipermagnesemia (> 4 mg/dl) pode causar fraqueza, náusea, tontura, confusão, diminuição dos reflexos, sonolência, paralisia da bexiga, ondas de calor, dor de cabeça e constipação, e valores > 12 mg/dl podem causar complicações cardiovasculares, distúrbios neurológicos e coma. Portanto, o uso dessa intervenção deve exigir um monitoramento próximo.

Os domínios considerados de alto risco de viés foram a causa mais provável de associações espúrias. O processo de randomização apresentou um alto risco de viés para dois estudos. Um estudo estava em alto risco de viés devido a desvios na intervenção pretendida e dados de resultados ausentes e outro devido a falhas na medição de resultados. Um estudo foi publicado como um resumo e apresentava alto risco de viés para dois domínios: dados de resultados ausentes e medida de resultado.

Algumas preocupações foram levantadas em todos os estudos incluídos em relação ao viés na seleção dos resultados relatados. Isso ocorreu porque a maioria dos estudos não apresentou um plano de análise pré-especificado. Nenhum dos estudos incluídos realizou uma análise de intenção de tratar, o que também é uma grande preocupação para a validade dos resultados e a eficácia das intervenções na prática clínica. A exclusão dos participantes da análise com base em sua adesão à intervenção pode deixar de fora aqueles destinados a ter um melhor resultado e prejudicar a comparação imparcial proporcionada pela randomização.

O artigo de Rebelo e colaboradores (2022) foi a primeira revisão sistemática especificamente sobre intervenções dietéticas e nutricionais em crianças com paralisia cerebral. Além de avaliar o risco de viés, buscou-se um amplo espectro de intervenções e resultados, tornando esta revisão uma boa referência para profissionais de saúde em termos de prática baseada em evidências. Infelizmente, os resultados não permitiram meta-análise para nenhuma intervenção/resultado, pois os estudos incluídos eram muito heterogêneos.

O pequeno número de ensaios clínicos randomizados sobre o uso de intervenções nutricionais em crianças com paralisia cerebral, aliado aos resultados promissores encontrados, revelou uma área negligenciada com potencial para melhorar a qualidade de vida de milhões de famílias. Estudos futuros precisam confirmar os resultados das intervenções avaliadas por autores anteriores usando métodos rigorosos para obter resultados válidos e, portanto, evidências de alta qualidade. Cuidados especiais devem ser tomados no processo de randomização, na análise de intenção de tratar e no desenvolvimento e publicação de um plano de análise pré-especificado.