Introdução |
A amamentação é o principal elo entre mães e os recém-nascidos e impulsiona a colonização microbiana, a maturação do sistema imunológico e ajuda nas atividades metabólicas, exercendo um papel fundamental na programação da saúde infantil.
O leite humano (LH) é o padrão ouro para a nutrição infantil, pois é perfeitamente adaptado às necessidades nutricionais neonatais e apoia o desenvolvimento infantil. Organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Academia Americana de Pediatria (AAP), recomendam o aleitamento materno exclusivo por pelo menos seis meses. Além dos aspectos nutricionais, ele contém uma combinação complexa e personalizada de componentes, incluindo imunoglobulinas, hormônios, oligossacarídeos e microrganismos, entre outros.
Micróbios do leite |
Historicamente, o leite materno (LM) era considerado um fluido estéril, no entanto essa ideia mudou após o isolamento de bactérias viáveis no mesmo. Métodos de cultura tradicional relataram a presença de bactérias lácticas como Lactobacillus, Lactococcus, Leuconostoc, alguns Bifidobacterium, Streptococcus, Enterococcus e Staphylococcus, entre outros. As tecnologias de sequenciamento de última geração revelaram uma maior diversidade microbiana, como Veillonella, Prevotella, Staphylococcus e Propionibacterium; e bactérias Gram-negativas, como Pseudomonas, Ralstonia e Klebsiella.
Mais de 820 táxons em nível de espécie foram identificados no leite materno, sendo a maioria pertencente aos filos Proteobacteria e Firmicutes com predominância de Streptococcus e Staphylococcus. O leite humano constitui uma das principais fontes de bactérias para o intestino do lactente.
Caso consuma aproximadamente 800 mL/dia, o bebê conseguiria ingerir entre 1x105 e 1x107 bactérias diariamente. Além disso, foi relatado que neonatos amamentados têm 27,7% de suas bactérias provenientes do leite materno.
Leite materno: transferência microbiana específica |
O LH desempenha um papel no desenvolvimento da microbiota infantil. O compartilhamento de bactérias especificas entre o leite materno e o intestino materno foram relatados. Esses dados sugeriram uma transferência única entre cada mãe e seu neonato. Na verdade, a transmissão vertical mãe-filho foi relatada mostrando que a B. vulgatus, B.teenis e B. dorei podem ter uma vantagem seletiva para colonizar o intestino infantil.
De uma perspectiva diferente, outro estudo revelou que as cepas intestinais maternas são as mais persistentes no intestino dos recém-nascido (16,4% da taxa de transmissão). De fato, a semelhança das cepas entre eles após um ano de acompanhamento permaneceu tão alta quanto 90%.
Vários estudos mostraram que a microbiota intestinal é a fonte mais frequente de bactérias para o lactente, seguido do leite. Esse fato pode ser explicado pelo “eixo intestino-mamário”, que levanta a hipótese de que bactérias ou metabólitos bacterianos podem ser transferidos para as glândulas mamárias, afetando a colonização intestinal do bebê e o desenvolvimento imunológico após o parto.
Qual benefício da transferência da microbiota para a saúde infantil? |
Como mencionado acima, as bactérias do leite materno conduzem a colonização intestinal infantil, mas também podem desempenhar várias funções importantes, como influenciar o desenvolvimento do sistema. Em resumo, as bactérias do leite materno:
- Promovem a homeostase imunológica intestinal: a exposição a microbiota é essencial para fornecer estímulos antigênicos que promovem o amadurecimento do sistema imunológico e melhoram a homeostase intestinal. A microbiota do leite materno pode promover a homeostase imunológica intestinal, por meio da especialização dos linfócitos T auxiliares para TH1/TH2 e pela diferenciação das células T reguladoras.
- Facilitam os processos digestivos: Análise molecular relatou que as bactérias do LH são metabolicamente ativas na produção de ácidos graxos de cadeia curta (SCFA), pois podem metabolizar os oligossacarídeos presentes no leite materno, que são indigeríveis pelo intestino do lactente.
- Inibem microorganismos patogênicos: Estudos in vitro mostraram que várias bactérias do LH, incluindo Lactobacillus rhamnosus e crispatus podem inibir o crescimento de microrganismos patogênicos.
Impacto do aleitamento materno na colonização do microbioma infantil |
- Microbiota intestinal: Aproximadamente 25 a 30% da microbiota intestinal infantil é derivada de leite materno. De fato, o tipo de alimentação é correlacionado ao desenvolvimento de diferentes comunidades microbianas intestinais. O aleitamento materno exclusivo comparado com fórmula foi associado a menor diversidade, mas maiores contagens, de Lactobacillus spp, Bifidobacterium breve e B. bifidum, e a cessação do aleitamento resultou na maturação do microbioma intestinal, marcada pelo filo Firmicutes. A colonização inicial por Bifidobacterium e Lactobacillus resulta em um ambiente intestinal mais ácido com uma alta concentração de SCFA produzida através da fermentação das bactérias dos oligossacarídeos do leite humano (HMO). Portanto, o LH orienta o desenvolvimento de microrganismos intestinais dos recém-nascidos tanto indiretamente pela transferência de prebióticos, promovendo a crescimento de espécies bacterianas específicas como Bifidobacterium; quanto diretamente pela transmissão vertical de espécies bacterianas.
- Microbiota oral: Estudos relataram diferenças na microbiota oral entre lactantes amamentados e alimentados com fórmula, como por exemplo a presença de Lactobacillus em bebês de três meses de vida que consumiram leite materno, mas não nos alimentados com fórmula. Um aumento de Prevotella, Granulicatella e Veillonella foram detectados na microbiota oral de neonatos alimentados com fórmula em comparação com amamentados. Além disso, a cavidade oral do bebê e o pré-colostro materno mostraram compartilhar alguns gêneros bacterianos, com Streptococcus spp. e Staphylococus spp., sugerindo que o LH é uma das primeiras fontes microbianas para estabelecer o microbiota oral.
- Microbiota do trato respiratório: O aleitamento materno foi associado à proteção contra infecções do trato respiratório na infância, com efeitos comprovados sobre a frequência, duração e gravidade das infecções. Uma forte associação entre amamentação e a composição da microbiota do trato respiratório em bebês de 6 semanas foi relatada, com uma diferença significativa na composição entre crianças amamentadas e alimentadas com fórmula. As primeiras apresentaram um aumento das bactérias produtoras de ácido lático e uma diminuição de Staphylococcus e bactérias anaeróbicas. Ao contrário, a microbiota das segundas mostrou um aumento de várias bactérias anaeróbias, como Veillonella e Prevotella, vários Streptococcus, Rothia, Gemella e Granulicatela.
Fatores que influenciam os microrganismos do leite materno |
- Saúde materna: Obesidade, alergia, doença celíaca entre outras patologias moldam a composição e a diversidade da microbiota do leite. As duas primeiras condições têm um papel fundamental na da redução da diversidade microbiana e a abundância de Bifidobacterium spp no LH de mães com essas condições. De fato, o leite de mães obesas ou com sobrepeso apresentou maior Staphylococcus e menor Lactobacillus. No caso de mães com doença celíaca em comparação com mães saudáveis, o LH apresentou concentrações de Bifidobacterium spp. e grupo B. fragilis significativamente reduzidas.
- Modo de parto e idade gestacional: Diferentes perfis de microbiota do LH foram descritos em partos prematuros e após 37 semanas. Em relação à via de parto, alguns estudos relataram que amostras de LH de mulheres que realizaram parto normal abrigaram maior diversidade da microbiota e níveis elevados de Bifidobacterium e Lactobacillus spp. em comparação com amostras de partos cesáreos. Outros estudos mostraram que o leite de mulheres submetidas ao parto cesáreo e/ou que receberam anestesia durante o parto tendia a ser menos provável de conter Lactobacillus.
- Antibióticos e outros tratamentos médicos: Mães que receberam antibióticos durante a gravidez ou lactação tiveram amostras de leite com uma menor diversidade de Lactobacillus e Bifidobacterium. A quimioterapia também foi associada a um aumento da presença de Acinetobacter e Xanthomonadaceae e diminuição de Bifidobacterium, Staphylococcus e Eubacterium spp.
- Localização geográfica: Diferentes perfis de microbiota do leite foram relatados em diferentes países com diferentes ambientes, climas, dietas e estilos de vida. Além disso, o microbioma do tecido mamário mostrou diferenças de acordo com à localização geográfica.
- Dieta materna e alimentos específicos: Embora os dados disponíveis sejam bastante limitados, as atuais evidências sugerem que a dieta tenha um impacto não só no intestino, mas também na microbiota do leite. No total, apenas 4 estudos examinaram as relações entre nutrientes específicos e microbiota do leite. Várias associações entre taxa microbiana do leite e consumo materno de ácidos graxos saturados (SFA) e monoinsaturados (MUFA), carboidratos, proteínas e fibras foram descritos. Curiosamente, a dieta materna durante a gravidez poderia ter um impacto maior na composição da microbiota do leite em comparação com a dieta durante a lactação. Associações entre a ingestão de macro e micronutrientes durante esses dois períodos e táxons da microbiota do leite foram descritos. O consumo de vitamina C durante a gravidez foi relacionado ao gênero Staphylococcus no leite, enquanto a ingestão de ácidos graxos poli-insaturados (PUFA) e ácido linoleico durante lactação foi positivamente correlacionada com bactérias do gênero Bifidobacterium. Várias outras vitaminas foram associadas com a microbiota leite materno, incluindo B1, B2 e B9.
- Infecções maternas: Dados limitados estão disponíveis no impacto de infecções (vírus e bactérias) na microbiota do leite. No entanto, os efeitos de sofrer mastite, considerado um estado disbiótico, são muito bem documentados. Mulheres que sofreram desta condição tinham um perfil de microbiota do leite diferente em comparação com amostras saudáveis.
- Genética materna: Embora a relação entre a genética do hospedeiro e microbiota ainda é pouco explorada, uma associação entre a produção de HMO e a genética materna foi documentada. Particularmente, o gene FUT2 foi associado com diferenças no perfil HMO. Além disso, uma relação entre o padrão HMO e a composição da microbiota do LH também foi descrita uma vez que o HMO estimula o crescimento de grupos específicos de bactérias intestinais, como Staphylococcus e Bifidobacterium spp.
Fig. 1 – Visão geral da composição do leite materno humano: fatores que afetam a microbiota do LH e o seu impacto no desenvolvimento do bebê. Imagem adaptada de Selma-Royo et al., (2021).
Estratégias para modular a microbiota do leite |
Diferentes estratégias foram propostas para modular a microbiota do intestino, no entanto, ainda, pouco se sabe sobre quais estratégias podem ser capazes para modular a microbiota do leite.
> Suplementação alimentar: probióticos e prebióticos
O uso de pró e prebióticos durante o último trimestre de gestação e o período de lactação foi explorado nas últimas décadas. O período da gravidez e da lactação é considerado uma janela de oportunidade para afetar a saúde materna e o desenvolvimento infantil. Diferentes cepas de Bifidobacterium e Lactobacillus foram utilizadas em ensaios clínicos com efeito positivo ou nenhum na saúde infantil. Além disso, os efeitos indiretos da administração de probióticos durante a gestação e amamentação foram associados aos perfis de citocina e HMO no LH.
Em relação ao consumo de prebióticos, as evidências são limitadas em mulheres grávidas ou lactantes. Em um estudo recentemente, Padilha e colaboradores (2020) administraram fruto-oligossacarídeos para mulheres lactantes e observaram que essa suplementação foi capaz de influenciar indiretamente a microbiota do leite.
> Restauração de leite humano/leite de doadora
Enquanto o leite humano é considerado o alimento mais adequado para o desenvolvimento da criança, geralmente se refere ao leite da própria mãe, já que a sua composição depende dos fatores maternos. No entanto, pode estar indisponível devido a algumas situações e o leite e o leite humano de doadora (LHD) é proposto como melhor alternativa na maioria dos casos. No entanto, os processos de pasteurização reduzem/eliminam a maioria dos compostos bioativos e microbianos do BM. Não só a pasteurização, mas também o armazenamento, congelamento e processamento, bem como as características intrínsecas do doador (genética, conteúdo de HMO, idade gestacional entre outros) podem alterar a composição do LHD em comparação com o leite da própria mãe. Apesar do possível impacto dessas diferenças no desenvolvimento infantil permanece inexplorado, estratégias estão sendo desenvolvidas para modificar a composição do LHD para melhorar sua semelhança com LM materno, incluindo a sua personalização após a pasteurização.
Conclusão |
O leite humano é considerado a fonte “ótima” de nutrientes para o bebê. O aleitamento materno exclusivo é incentivado, pois promove o crescimento e desenvolvimento infantil adequado. Os microrganismos transmitidos ao recém-nascido por meio da amamentação têm um efeito potencial na saúde infantil através do impacto microbiano, metabólico e imunológico. Mais pesquisas são necessárias para entender as interconexões entre os componentes microbianos do leite, incluindo não apenas bactérias, mas também fungos e vírus.