A Organização Mundial de Saúde (OMS) propõe que, para o uso racional de medicamentos, é preciso, em primeiro lugar, estabelecer a sua necessidade; a seguir, que o receite corretamente, a melhor escolha, de acordo com os ditames de eficácia e segurança comprovados e aceitáveis. Além disso, é necessário que o medicamento seja prescrito adequadamente, na forma farmacêutica, doses e período de duração do tratamento; que esteja disponível de modo oportuno, a um preço acessível, e que responda sempre aos critérios de qualidade exigidos; que se dispense em condições adequadas, com a necessária orientação e responsabilidade, e, finalmente, que o paciente cumpra o regime terapêutico já prescrito, da melhor maneira possível.
Todavia, pelo menos 35% dos medicamentos adquiridos no Brasil são feitos através de automedicação.
Esse hábito muitas vezes de dá pela dificuldade de acesso aos serviços de saúde, no qual é necessário ficar horas ou até mesmo meses na fila para ser atendido por um médico. O baixo poder aquisitivo da população e a precariedade dos serviços de saúde contrastam com a facilidade de se obter medicamentos, sem pagamento de consulta e sem receita médica em qualquer farmácia, onde, não raro, se encontra o estímulo do balconista interessado em ganhar uma comissão pela venda.
Além disso, os médicos, muitas vezes, não têm acesso a informações completas a respeito da segurança dos fármacos. Parte deles sequer conhece o conjunto dos possíveis efeitos nocivos do que prescreve, ou não sabe identificar nem prevenir corretamente combinações perigosas entre as substâncias farmacológicas. Por outro lado, alguns pacientes ignoram os perigos de se misturar medicamentos. Há também aqueles acompanhados por vários médicos, sem que haja intercomunicações entre eles.
Soma-se a todos esses fatores, a propaganda de medicamentos, que tem sido um estímulo frequente para o uso inadequado dos mesmos, sobretudo, porque tende a ressaltar os benefícios e omitir ou minimizar os riscos e os possíveis efeitos adversos, dando a impressão, especialmente ao público leigo, que são produtos inócuos, influenciando-os a consumir como qualquer outra mercadoria.
Para agravar ainda mais esta situação, constatamos a utilização crescente da Internet para disseminar propaganda para os consumidores, muitas delas assumindo uma forma menos explícita já que tentam dar a impressão de que são instrumentos educativos ou de informação, objetivando promover a saúde.
Um relatório do Conselho Federal de Farmácia (CFF) alertou as autoridades sanitárias do mundo inteiro para o rápido tráfico de drogas lícitas (medicamentos controlados) pelas farmácias virtuais. O CFF se pronunciou chamando a atenção de que a venda de medicamentos é muito mais grave do que se imagina, pois além do tráfico, acumula outros graves problemas à saúde da população. Os usuários de múltiplas drogas, os ex-pacientes que se tornam dependentes e permanecem fazendo uso de medicamentos, mesmo depois de terem concluído o tratamento, e as pessoas que preferem a comodidade de receber produtos em casa e a preços baixos são os alvos do “cibertráfico”. Ainda é importante lembrar que esse tipo de comércio remoto, por fugir à fiscalização e a outros tipos de controle, pode ainda fazer com que produtos falsificados ou com prazo de validade vencido vão parar nas mãos de usuários pouco cautelosos.
O papel simbólico dos medicamentos e a sociedade de consumo |
Para um melhor entendimento sobre a problemática do uso irracional de medicamentos, faz-se necessário compreender as relações de consumo da sociedade e a interação das mesmas com os medicamentos.
“O consumo é algo inerente ao homem”, havendo uma relação entre as transformações da sociedade e o fenômeno do consumo. Sendo assim, o medicamento não está desvinculado dessa característica social. Diferentemente de outras épocas históricas, o capitalismo pós-moderno incentiva o consumo através da publicidade. O uso de drogas pela humanidade, para os mais diversos fins, é antiquíssimo e permanece como um ato, ainda hoje, cheio de conteúdos simbólicos nas mais diversas culturas.
A crença excessiva e, até certo ponto, ingênua no poder dos medicamentos, ao lado da crescente oferta e indicação desses produtos, com vigoroso suporte da mídia, tendem a aproximá-los da condição de fetiche inanimado da atualidade, encarnando o poder sacralizado da ciência e da tecnologia sobre a vida dos mortais. Considera-se o medicamento uma resposta imediata e fácil para condições que requerem ações individuais e sociais de fundo para sua resolução.
A proposta de alívio imediato do sofrimento, como em um passe de mágica, é um apelo atraente, mas tem seu preço. Este preço nem sempre se restringe ao desembolso financeiro e pode ser descontado na própria saúde. A noção de que existe uma ecologia do corpo, que merece ser preservada e poupada da poluição e intervenções farmacológicas desnecessárias, vem emergindo, ainda que lentamente, em meio à névoa densa de promessas extraordinárias.
Portanto, faz-se necessário que a sociedade se conscientize e entenda que o mesmo medicamento que cura, pode matar ou deixar danos irreversíveis.
Estatísticas |
- Aproximadamente um terço das internações ocorridas no Brasil tem como origem o uso incorreto de medicamentos.
- Estatísticas do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox)14 da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) revelam que os medicamentos respondem por 27% das intoxicações no Brasil, e 16% dos casos de morte por intoxicações são causados por medicamentos.
- 25 a 70% do gasto em saúde, nos países em desenvolvimento, correspondem a medicamentos, em comparação a menos de 15% nos países desenvolvidos.
- 50 a 70% das consultas médicas geram prescrição medicamentosa.
- 50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente.
- 75% das prescrições com antibióticos são errôneas.
- Cresce constantemente a resistência da maioria dos microorganismos causadores de enfermidades infecciosas prevalentes.
- Os hospitais gastam de 15 a 20% de seus orçamentos para lidar com as complicações causadas pelo mau uso de medicamentos.
Medidas para promover o uso racional de medicamentos |
De acordo com a definição do uso racional de medicamentos proposta pela Política Nacional de Medicamentos, os requisitos para a sua promoção são muito complexos e envolvem uma série de variáveis, em um encadeamento lógico. Para que sejam cumpridos, devem contar com a participação de diversos atores sociais: pacientes, profissionais de saúde, legisladores, formuladores de políticas públicas, indústria, comércio, governo.
Preocupado com este grave problema de saúde pública, o Ministério da Saúde do Brasil criou o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos por meio da Portaria no 427/07, o que vem a atender uma recomendação da OMS. O Comitê desenvolverá ações estratégicas para ampliar o acesso da população à assistência farmacêutica e para melhorar a qualidade e segurança na utilização dos medicamentos.
De uma maneira geral, as soluções propostas para reverter ou minimizar este quadro devem passar pela educação e informação da população, maior controle na venda com e sem prescrição médica, melhor acesso aos serviços de saúde, adoção de critérios éticos para a promoção de medicamentos e incentivo à adoção de terapêuticas não medicamentosas.