Um problema crescente com novas intervenções

Dengue

Revisão da patogênese, epidemiologia, prática clínica e vacinação

Autor/a: Joshua M. Wong, Laura E. Adams, DVM, Anna P. Durbin, Jorge L. Mu~noz-Jordan y otros

Fuente: Pediatrics. 2022;149(6):e2021055522

Indice
1. Texto principal
2. Referencias bibliográficas
Introdução

A dengue é a doença causada por quatro vírus intimamente relacionados, mas distintos, classificados de 1–4 (DENV-1–4). São comumente transmitidos pela picada de uma fêmea infectada do mosquito Aedes spp.

É a doença arboviral mais comum no mundo, com uma estimativa de 390 milhões de infecções  e 96 milhões de casos sintomáticos anualmente.1 A incidência global quase dobrou nas últimas 3 décadas e espera-se que continue a crescer na Ásia, África Subsaariana e América Latina.2,3 Historicamente, a maior carga ocorre em crianças, adolescentes e jovensadultos .4

Em 2019, os países das Américas relataram mais de 3 milhões de casos de dengue, o maior número já registrado,5 com maior proporção de casos graves  e aumento da mortalidade na população pediátrica.6

Fatores ambientais que contribuem a dengue

Em áreas endêmicas, fatores ambientais como água parada onde os mosquitos põem ovos, habitação de baixa qualidade, falta de ar condicionado e fatores climáticos (ou seja, temperatura, chuva e umidade) aumentam a abundância, distribuição e risco de exposição ao Aedes aegypti.2,17–21

Prevê-se que as mudanças climáticas aumentem a população sob risco de dengue, principalmente por meio do aumento da transmissão em áreas atualmente endêmicas e, secundariamente, pela expansão da distribuição geográfica dos mosquitos Aedes spp.2,22 A urbanização, o aumento da densidade populacional, a migração humana e os fatores de crescimento social e ambiental associados à pobreza também devem impulsionar esse aumento. 21,23–26 As viagens são um importante fator de propagação, introduzindo a dengue, ou seus sorotipos, em áreas em que se não viam casos.13,23,27,28

Patogênese

Os DENVs pertencem ao gênero Flavivirus da família Flaviviridae. Como existem 4 sorotipos, os indivíduos podem se infectar até 4 vezes na vida. Embora a maioria seja assintomática ou cause apenas doença leve, a enfermidade grave pode ocorrer e é caracterizada por extravasamento de plasma, um processo fisiopatológico pelo qual o fluido rico em proteínas que é um componente do sangue vaza para o ambiente, levando ao acúmulo de fluido extravascular, resultando em choque, coagulopatia ou lesão de órgão-alvo.30,31

A infecção com 1 sorotipo de dengue induz proteção ao longo da vida contra infecção sintomática daquele sorotipo específico (imunidade homotípica)32,33 e induz apenas proteção cruzada de curto prazo  para os outros sorotipos (imunidade heterotípica).34 ,35

Quando os pacientes adquirem a sua segunda infecção, correm o maior risco de doença grave por causa da amplificação dependente de anticorpos (ADE). Também pode ser observada em crianças nascidas de mães com infecção prévia, apresentando o menor risco da doença grave logo após o nascimento e de maior risco aproximadamente 4 a 12 meses após o nascimento, com sua subsequente redução após esse período.36 O período inicial de menor risco foi correlacionado com altos níveis de anticorpos maternos adquiridos passivamente imediatamente após o nascimento e o de maior com uma diminuição desses para níveis subneutralizantes.37

Trabalhos subsequentes demonstraram que títulos de anticorpos heterotípicos mais baixos são ineficazes na neutralização de vírions, mas ainda se ligam a eles, facilitando a ligação a receptores Fcɣ em monócitos circulantes e resultando em maior viremia do que em infecções primárias.38

Acredita-se que a temida sequela do extravasamento de plasma seja mediada por altos níveis da proteína não estrutural DENV 1 (NS1), uma proteína chave para a replicação e patogênese viral,39,40 que danifica os glicocálices endoteliais e interrompe as junções das células endoteliais.41 ,42 Pensa-se que a imunidade mediada por células por meio de células T CD8 específicas da dengue proteja contra a ADE e doenças graves.43,44

A amplificação dependente de anticorpos explica a doença grave em crianças mais velhas e adultos, onde os anticorpos heterotípicos produzidos após uma infecção primária por dengue diminuirão ao longo do tempo para níveis subneutralizantes, resultando em risco aumentado de doença grave com infecção secundária. Após a essa, são induzidos potentes anticorpos multitípicos/neutralizadores cruzados que então protegem contra a doença grave em infecções terciárias e quaternárias.45,46 Embora o risco de dengue grave seja maior com infecção secundária, pode ocorrer em qualquer outro contato com o vírus.47,4849

Considerações clínicas

> Apresentação e avaliação

As infecções por DENV têm uma ampla gama de apresentações, desde assintomática (aproximadamente 75% 50) até coagulopatia associada, choque ou lesão de órgão-alvo.30,31 As sintomáticas são elas mais comumente presentes com febre acompanhada de sintomas inespecíficos, como náuseas, vômitos, erupção cutânea, mialgia, artralgia, dor retro-orbitária, dor de cabeça e/ou leucopenia.51

A doença grave se desenvolve em até 5% de todos os pacientes, embora certas populações, como bebês ≤ 1 ano de idade, mulheres grávidas e adultos ≥65 anos de idade, ou indivíduos com condições subjacentes específicas, como diabetes, obesidade classe III, hipertensão, asma, coagulopatia, gastrite ou úlcera péptica, doença hemolítica, doença hepática crônica, terapia anticoagulante ou doença renal, apresentem um risco aumentado .52,53

Em todos os pacientes com dengue, os sinais de alerta são achados clínicos específicos que podem prever a progressão para doença grave e são usados ​​pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para auxiliar os médicos na triagem e nas decisões de gerenciamento.

Os sinais de alerta da dengue incluem dor ou sensibilidade abdominal, vômito persistente, acúmulo clínico de líquido, sangramento da mucosa, letargia ou inquietação, aumento do fígado > 2 cm e aumento do hematócrito concomitante com diminuição rápida da contagem de plaquetas.52 Embora sejam úteis para a avaliação de pacientes, eles não se destinam a diferenciar a dengue de outras infecções e doenças não infecciosas, como influenza.

> Teste diagnóstico

Para pacientes sintomáticos, os testes de amplificação de ácidos nucleicos (NAT) no soro, plasma ou sangue total detectam o RNA DENV durante os primeiros 7 dias da doença com alta sensibilidade e especificidade.56,57 Além disso, o antígeno NS1 também pode ser detectado nesse período e fornece evidência confirmatória de infecção por DENV.58

Para pacientes com NAT negativo ou que se apresentam ao hospital com mais de 7 dias de sintomas, uma imunoglobulina M (IgM) positiva contra DENV pode sugerir infecção recente, embora com menos certeza do que um teste de NAT ou NS1.59

> Tratamento

Embora vários medicamentos tenham sido explorados como possíveis tratamentos para a dengue, nenhum demonstrou redução na viremia, manifestações clínicas ou complicações.30,65

Como tal, o tratamento se concentra em cuidados de suporte. Os médicos devem avaliar todos os pacientes na apresentação e no acompanhamento quanto a sinais de alerta de dengue grave. Os que não apresentarem podem ser tratados ambulatoriamente, enquanto os que apresentam alto risco de progressão devem ter avaliados para tratamento hospitalar.66

No ambiente ambulatorial, a febre pode ser controlada com paracetamol e medidas físicas de resfriamento. Devido ao risco de sangramento e trombocitopenia, aspirina e anti-inflamatórios não esteróides não são recomendados. A hidratação oral foi associada a menores taxas de hospitalização  e é um componente-chave do atendimento.67-69

O reconhecimento precoce de sinais de alerta ou dengue grave é essencial para o início do gerenciamento de fluidos intravenosos sistêmicos para restaurar o volume intravascular e evitar complicações relacionadas e a progressão da doença.30,70 Ressuscitação de grande volume com soluções isotônicas é recomendada para pacientes em choque.54 ,71–73

O gerenciamento de fluidos requer monitoramento clínico e laboratorial contínuo e ajuste da taxa para manter o volume adequado, mas também para evitar a sua sobrecarga. A mortalidade por dengue grave não tratada pode ser de 13% ou mais74,75, mas pode ser reduzida para <1% com diagnóstico precoce e manejo adequado.55

 Corticosteróides,77 imunoglobulinas,78 e transfusões profiláticas de plaquetas79,80 não mostraram benefícios e não foram recomendados.

> Medidas de prevenção tradicionais

A prevenção da dengue envolve proteção contra picadas de mosquito.

Viajantes e residentes de áreas endêmicas podem prevenir picadas de mosquito usando repelentes e vestindo roupas que cubram braços e pernas.

O uso de janelas e portas fechadas, ar condicionado e mosquiteiros também foram associados à proteção.24,81-87 Os locais em que os mosquitos podem colocar ovos devem ser eliminados esvaziando e limpando, cobrindo ou removendo recipientes com água parada.

> Novos esforços de controle de vetores

As intervenções tradicionais de controle de vetores podem ser demoradas e ineficientes.88 Além disso, o controle químico é limitado pela resistência generalizada a inseticidas em áreas endêmicas.89 Em resposta a esses desafios, novos métodos de controle de vetores foram desenvolvidos, incluindo várias estratégias que empregam tecnologia de mosquitos geneticamente modificados e duas estratégias usando Wolbachia pipientis, uma bactéria intracelular encontrada em aproximadamente 60% de todos os insetos, mas não comumente encontrada em mosquitos Aedes selvagens.90-92

A primeira é a supressão mediada pela bactéria, na qual uma redução nas populações selvagens de mosquitos Aedes é alcançada pela liberação contínua de machos infectados no ambiente.93 Quando esses acasalam com fêmeas selvagens, os ovos resultantes são inviáveis, levando a um declínio na população de mosquitos selvagens.94 Alguns relatórios documentaram reduções nas populações selvagens que podem transmitir dengue em mais de 80%.95,96

A segunda é o método de substituição de Wolbachia, onde ambos os mosquitos machos e fêmeas infectados pela bactéria são liberados. Como a é transmitida por via materna, os mosquitos que eclodem dos ovosserão infectados com a bactéria desde o nascimento.97,98. Esse método mostrou reduções significativas de quase 80% nos desfechos de infecção por dengue e hospitalizações relacionadas nas áreas onde foi implementado99 e está sendo implementado atualmente em vários países

Estudos extensivos não encontraram evidências de Wolbachia em plantas, solo ou outros insetos em contato com mosquitos infectados ou qualquer evidência de transmissão da bactéria para humanos através da picada de mosquitos infectados, indicando que os riscos de segurança de intervenções baseadas são baixos.100

Vacina

A Qdenga (TAK-003) é um imunizante contra a dengue desenvolvido pelo laboratório japonês Takeda Pharma. Ccontém vírus vivos atenuados, sendo assim, é capaz de induzir respostas imunológicas contra os quatro sorotipos do vírus. O produto está destinado à população pediátrica acima de quatro anos, adolescentes e adultos até 60 anos de idade. O imunizante estará disponível para administração via subcutânea em esquema de duas doses, com intervalo de três meses entre as aplicações.

A eficácia contra a dengue para todos os sorotipos combinados entre indivíduos soronegativos para dengue (sem infecção anterior pelo vírus da dengue) foi de 66,2% (IC de 95%: 49,1%, 77,5%). Já para os indivíduos soropositivos (indivíduos que tiveram infecção anterior pelo vírus dengue), esse valor foi de 76,1% (IC de 95%: 68,5%, 81,9%).

Individualmente, a eficácia calculada contra o sorotipo DENV-1 foi de 69,8%, contra o sorotipo DENV-2 de 95,1% e contra o sorotipo DENV-3 de 48,9%. Para o sorotipo DENV-4, o reduzido número de casos identificados durante os estudos não permitiu estabelecer um resultado de eficácia de forma estatisticamente relevante.

Adicionalmente, no caso específico do DENV-3, o resultado de eficácia para indivíduos soronegativos não se mostrou satisfatório.

Todavia, o valor de eficácia global da vacina, que é o objetivo primário do estudo clínico apresentado, atingiu o patamar de 80,2%, calculado a partir da comparação dos resultados dos participantes que receberam a vacina e dos que receberam placebo, para todos os quatro sorotipos, e contabilizando todos os casos de dengue identificados, seja em indivíduos soropositivos ou soronegativos.


Tradução, resumo e comentário objetivo: Dra. Alejandra Coarasa