Relação microbiota-hospedeiro

Disbiose vaginal

Conceito, evidências atuais e perspectivas

Autor/a: Dr. Dan Linetzky Waitzberg

Indice
1. Página 1
2. Referências Bibliográficas
3. Bula do produto - Gynopac®

Diferentes nichos do corpo humano acomodam comunidades ecológicas de microrganismos comensais, simbióticos e patogênicos, coletivamente chamadas de microbiota humana. Microrganismos componentes da microbiota humana se distribuem heterogeneamente no hospedeiro e com ele convivem de forma dinâmica, interativa e intrincada.1,2 Ao conjunto desses microrganismos, seus genomas e condições ambientais que os circundam se atribui o nome de microbioma humano. 

O Projeto Microbioma Humano revelou que a microbiota humana afeta a homeostase de nutrientes, aquisição de nutrientes, aquisição programada de imunidade e proteção contra patógenos de seu hospedeiro, entre outros.3,4 A relação microbiota-hospedeiro é essencialmente homeostática e mutualista, resultado de uma coevolução de cerca de meio milhão de anos. Entretanto, esse equilibrado ecossistema pode ser rompido por fatores internos (estado hormonal, idade e sistema imunológico) e/ou externos (antibióticos, infecções e exposição ambiental microbiana), fenômeno observado em diversas condições de enfermidades e conhecido como disbiose.4 

A cavidade oral e o trato intestinal tem sido alvo principal dos estudos científicos sobre a microbiota humana. Entretanto, nos últimos anos, existe uma preocupação crescente com a saúde feminina, especificamente em relação à microbiota vaginal.5,6 Ocorre que as propriedades bioquímicas e inflamatórias do ambiente vaginal são determinadas por sua microbiota residente que, por sua vez, pode impactar profundamente a saúde da mulher e de seus recém-nascidos. 

Assim sendo, a microbiota vaginal pode influenciar o risco de adquirir infecções do trato urinário, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e malignidades ginecológicas, mas também impactar a fertilidade e a capacidade de levar um feto a termo.

Determinar o que é “normal” no contexto da microbiota humana é um desafio. Em uma coorte de mulheres americanas saudáveis e em idade reprodutiva, Ravel e colaboradores (2011) distinguiram cinco microbiomas vaginais, com base na composição e abundância de suas espécies bacterianas (do inglês, community state types - CST):

Tabela 1: Principais espécies bacterianas e seus subgrupos. *CST IV foi mais abundante em mulheres negras e hispânicas e se distinguiu dos demais por sua comunidade heterogênea, com depleção de lactobacilos e alta diversidade.5 Imagem adaptada de Ravel e colaboradores (2011).

Consistente com o modelo CST, a avaliação sistemática de dados publicados sobre a microbiota vaginal revelou que esta é majoritariamente dominada por 1 de 4 nichos do táxon Lactobacillus, especificamente L. crispatus, L. jensenii, L. gasseri e L. iners.9 Nesse sentido, parece que, enquanto a saúde da microbiota intestinal é diretamente proporcional à sua diversidade, a microbiota vaginal “saudável” é predominantemente dominada por um único táxon. Essa estrutura particular da microbiota vaginal é consistente com comunidades microbianas que coevoluíram com os humanos ao longo do tempo para servir a funções críticas do hospedeiro.11

A dominância de lactobacilos e o baixo pH (<4,5) da vagina humana é única na natureza.

A vagina dos demais mamíferos apresenta pH neutro e uma mistura de espécies bacterianas, onde lactobacilos dificilmente representam mais de 1% da microbiota.12,13 Notadamente, os lactobacilos têm efeitos protetores na vagina humana que, supostamente, evoluíram em associação à receptividade sexual contínua da mulher (ao longo do ciclo menstrual, gravidez e período pós-parto) – o que aumenta os riscos de ISTs e complicações obstétricas.14 O papel protetor dos lactobacilos na vagina humana é exercido por vários mecanismos, que incluem a neutralização do crescimento excessivo de outros microrganismos através da competição por nutrientes e aderência tecidual, redução do pH vaginal por produção de ácidos orgânicos (principalmente o ácido lático), modulação do sistema imunológico local e produção de substâncias antimicrobianas, como bacteriocinas.15

Mesmo de baixa diversidade, a microbiota vaginal apresenta uma natureza notadamente dinâmica. Ao longo da vida da mulher, a microbiota vaginal sofre flutuações, influenciadas por níveis de hormônios sexuais, conteúdo de glicogênio no epitélio vaginal, pH vaginal e respostas imunológicas.8 Desvios temporários (principalmente de curta duração) de um estado fundamental dominado por Lactobacillus são comuns em mulheres em idade reprodutiva, tipicamente associados a menstruação e atividade sexual.16 Em particular, grande de lactobacilos e mudança de L. crispatus para L. iners são observadas durante o ciclo menstrual.17-20

Uma vez que a microbiota vaginal não é estável, o uso do termo “disbiose” em referência ao microbioma vaginal nem sempre é simples.

Nesse sentido, frequentemente, a não dominância de lactobacilos caracteriza a disbiose vaginal.21 A depleção de lactobacilos na vagina humana tem sido associada com maior suscetibilidade a ISTs, incluindo a infecção por vírus da imunodeficiência adquirida humana (HIV) e aumento do risco de complicações na gravidez.22,23 Por outro lado, a depleção de lactobacilos é componente comum da microbiota de mulheres negras e latinas e é muitas vezes observada em mulheres assintomáticas de outras raças, que não apresentam risco aumentado para complicações (ex: pré-púberes e pós-menopausa).24 Portanto, o conceito de disbiose vaginal ainda é complexo.

Graças ao avanço da tecnologia, com a aplicação de técnicas de sequenciamento genético (ex: 16Srna), o conhecimento dos diferentes tipos de disbiose vaginal e sua relação com distúrbios urogenitais e reprodutivos aumentou nos últimos anos. A mais comum e estudada ocorre na vaginose bacteriana, que é predominantemente marcada pela depleção de lactobacilos e proliferação de várias bactérias gram-negativas e/ou anaeróbicas, com alta prevalência da espécie Gardnerella vaginalis (95-100% dos casos).25,26 A patologia está associada a diversas consequências ginecológicas e obstétricas adversas, que incluem maior risco de parto prematuro, doença inflamatória pélvica, endometrite, neoplasia intraepitelial cervical e aquisição de ISTs, incluindo HIV e papilomavírus humano (HPV).27

Outra condição de disbiose vaginal bem estudada é a candidíase vulvovaginal, relacionada com a presença de um fungo (Candida albicans), cuja patogenicidade também está relacionada com comunidades bacterianas residentes, que modulam diretamente sua virulência.28

Experimentalmente, espécies de lactobacilos exercem um efeito inibitório sobre o crescimento, transição morfológica, virulência e formação de biofilme de C. albicans.29 No entanto, apenas cepas especificas de lactobacilos podem produzir esses metabólitos em quantidades necessárias para a atividade antifúngica.29 Diferentes autores relataram uma sub-representação relativa de lactobacilos produtores de peróxido de hidrogênio em mulheres com candidíase vulvovaginal, ao lado de uma sobre-representação relativa de L. iners.30,31

A reunião das evidências cientificas, obtidas até o momento, permite entender as bactérias componentes da microbiota vaginal humana como potencial barreira biológica contra microrganismos patogênicos. É consenso que a microbiota vaginal humana agrupa um número restrito de comunidades bacterianas, que estão em constante mudança.

Certos tipos de CSTs estao mais associados a maus resultados reprodutivos e ISTs, enquanto CSTs dominadas por espécies de Lactobacillus, em particular L. crispatus, estão mais relacionadas com a saúde vaginal.

Quando a predominância da comunidade de lactobacilos é interrompida, há maior risco para a proliferação de patógenos vaginais.7

Os conhecimentos, já bem estabelecidos, sobre a associação hospedeiro-microbiota vaginal têm sido importantes para o desenho de terapias com alvo na microbiota vaginal e na medicina materno-fetal. De um lado, o desenvolvimento da tecnologia do sequenciamento genético permite o diagnóstico do perfil bacteriano vaginal sem as limitações impostas pela biologia bacteriana em sistemas de culturas microbiológicas; de outro o uso de terapia de reposição hormonal, probióticos e intervenções dietéticas aponta resultados animadores para personalizar o tratamento na prática clínica atual.7 Indicações podem incluir diagnóstico de candidíase de repetição, infecção urinaria e de pré-menopausa e menopausa, acompanhamento de terapia hormonal e de pacientes submetidos à fertilização in vitro (para evitar a perda de embriões de boa qualidade) e fornecimento de informações sobre o ambiente microbiológico que o embrião encontrará no momento da implantação, para mulheres com interesse em engravidar.


Dr. Dan Waitzberg

Professor associado ao Departamento de Gastroenterologia da FMUSP. Mestre, Doutor e Livre-Docente pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Terapia Nutricional Enteral e Parenteral pela Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral (BRASPEN) e diretor do GANEP Nutrição Humana. 
 

 


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