Reprodução sexual | 23 MAR 24

Sob a pele: implantes subcutâneos, hormônios e gênero

Concepções de gênero e sexualidade presentes no processo de estabilização dos implantes subcutâneos e a medicalização dos corpos através do uso de hormônios sexuais
Autor/a: Daniela Manica e Marina Nucci Sob a pele: implantes subcutâneos, hormônios e gênero
Introdução

Desde períodos mais remotos, tentava-se separar a relação sexual da reprodução. Durante a história da humanidade, muitas tentativas foram feitas nesse sentido, como no Egito Antigo em que se usava goma arábica dentro do canal vaginal.

Na década de 1960, a contracepção hormonal oral foi desenvolvida e desde então, diversas vias (intramuscular, vaginal, cutânea e subcutânea) foram introduzidas com objetivo de ter um maior controle fertilidade, com maior aceitação populacional. No artigo, Manica e Nucci (2017) discutiram o desenvolvimento de uma dessas tecnologias alternativas, a dos implantes subcutâneos contraceptivos, e exploraram as concepções de gênero e sexualidade presentes no processo de estabilização dessa tecnologia, e de medicalização dos corpos através do uso de hormônios sexuais.

Implantes subcutâneos

Dentre os benefícios dos implantes subcutâneos, pode-se falar sobre a possibilidade de uma dosagem hormonal inferior às diárias ingeridas com as pílulas. Além disso, o mesmo possui ação por um longo período de tempo e pouco “controle” por parte da usuária na sua administração. Talvez por conjugar essas duas últimas características, a técnica dos implantes subcutâneos teve uma trajetória marcada por controvérsias.

O Norplant foi o primeiro implante subcutâneo produzido pela indústria farmacêutica, e compreendeu um conjunto de bastonetes de silicone microporoso, que continha o hormônio levonorgestrel, com ação contraceptiva. Diversos potenciais abusos foram encontrados em relatórios sobre o fármaco como: recomendações para implantá-lo nas mulheres que quisessem, sem discutir outras opções; evidências de que alguns talvez tenham sido implantados sem saber se a paciente estava ou não grávida; a expectativa de que os implantes fossem mantidos por cinco anos, e a ausência da discussão sobre a questão da remoção; que as informações sobre efeitos colaterais eram restritas porque “muita informação poderia amedrontar as mulheres e desencorajar o uso”; e, finalmente, que 40% das usuárias relataram uma dor terrível durante a remoção.

Além disso, foi utilizado como instrumento de penalização ou punição nos Estados Unidos – como, por exemplo, no caso de um juiz na Califórnia que ordenara o seu uso para uma mulher acusada de maus tratos ao filho – e de “redenção” ou “premiação” para determinadas pessoas – como um legislador no estado de Kansas que propôs às beneficiárias da Previdência que aceitassem o Norplant, um pagamento de US$ 500 e, depois, US$ 50 por ano.

O Norplant foi um dos primeiros implantes produzidos por laboratórios farmacêuticos a ser estudado para disponibilização no mercado brasileiro. No entanto, em virtude das mobilizações contrárias, suas pesquisas clínicas acabaram sendo proibidas no país na década de 1980, bem como sua aprovação. Apesar disso, desde 1999 o laboratório farmacêutico Organon comercializa outro implante contraceptivo com um hormônio similar (etonorgestrel), chamado Implanon, cuja duração é de até três anos.

No cenário brasileiro, uma das pessoas mais influentes sobre esses implantes subcutâneos contraceptivos, é o Prof. Dr. Elsimar Coutinho. Tendo adquirido o know-how a partir de pesquisas com os mais variados hormônios, e frustradas as tentativas iniciais de patenteamento ou produção industrial desses implantes, optou por uma produção em pequena escala pelo laboratório de manipulação Elmeco e pela comercialização desses a um custo mais alto, cuja recomendação é feita de forma “individualizada”. Sua presença frequente na mídia, as publicações de livros e o testemunho de pacientes/personalidades do meio artístico colaboraram para a valorização do seu atendimento clínico, e do uso desses implantes.

Dentre os implantes comercializados, as principais indicações eram: estradiol, usado para a reposição hormonal em mulheres na menopausa; a testosterona, como complemento na reposição hormonal em mulheres, para tratamento dos sintomas como baixa da libido, depressão e perda de memória, e para reposição hormonal em homens; o levonorgestrel para reposição hormonal em mulheres, especificamente para as que têm predisposição para “pólipos endometriais”; a gestrinona, usada no tratamento da endometriose e da miomatose (entre outros) e o acetato de nomegestrol, para reposição hormonal.

Sendo assim, no contexto das pesquisas clínicas com o Norplant no Brasil, na década de 1980, a menor autonomia das mulheres em relação à tecnologia, bem como seu potencial para ser “compulsoriamente” mantido nos corpos femininos foram fatores que configuraram divergências irreconciliáveis com os movimentos sociais em defesa da saúde da mulher.

A partir da década de 2000, ressurgem no mercado farmacêutico brasileiro como uma forma segura, eficaz e relativamente duradoura para acessar tratamentos hormonais diversos. Configuraram-se como formas possíveis para a reposição hormonal ou tratamentos de saúde (para endometriose e miomas, por exemplo), e também para “suprimir a menstruação”, algo que se torna positivo e desejável ou mesmo um novo “estilo de vida” para mulheres “modernas”. Tanto em seu formato mercadológico convencional (como o Implanon) como nos produzidos pela Elmeco, os implantes passaram a ser apresentados como artefatos de “alta tecnologia” para tratamento de questões endocrinológicas.

Microchips

Em meados de 2014, diversos meios de comunicação internacionais divulgaram o lançamento de microchips contraceptivos. Foram anunciados como uma solução prática, de longo prazo, para situações em que é necessário administrar regular e frequentemente uma substância, como no caso do tratamento da osteoporose. 

Também pelo uso subcutâneo e prolongado, com duração de até 16 anos, e utilizando hormônios similares aos dos implantes, como o levonorgestrel, os microchips atualizaram a discussão sobre a tecnologia dos implantes. Este seria ativado por um sinal de rede sem fio, capaz de acionar a liberação da dosagem pré-programada da droga pelo microrreservatório. Além disso, pode ser construído com sensores que liberam as substâncias em resposta a mudanças fisiológicas ou metabólicas da paciente.

Comparativamente com os injetáveis e os implantes subcutâneos, a tecnologia dos microchips é apresentada como superior, seja pela durabilidade (de até 16 anos após a inserção), seja pela possibilidade de manejo diário e de interrupções planejáveis pela usuária ou por uma equipe médica sem a necessidade de retirada do dispositivo, ao contrário do que acontece no caso dos implantes de silicone.

Na mídia, uma das principais questões levantadas e discutidas foi a segurança da comunicação. A possibilidade de outras pessoas acessarem o dispositivo, provocando ou inibindo a liberação da substância sem o controle/ciência da usuária foi levantada como uma das inseguranças do método. Assim, as críticas abordaram a necessidade, bem como os limites, de uma codificação dos dados dos dispositivos móveis que devem controlar os microchips, problematizando a possibilidade de eles serem invadidos e manipulados por terceiros, em uma espécie de “hackeamento” ovariano.

 

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