Relato do Dr. Alejandro Karavokiris | 05 AGO 23

Memória de Borges

A escrita, a sombra de Borges e algumas promessas não cumpridas
Autor/a: Dr. Alejandro Karavokiris 

- Você sabia, professor, sobre o seu amigo Adalberto Urquiaga?

- Sim, um mal poeta, como diriam alguns... porém é um bom homem.

- Tem alguns poemas renomados. Sem ir mais longe, descobri que em uma velha nota de rádio que Antonio Carrizo fez a Borges na rádio Rivadavia, Borges recitou um poema completo de Urquiaga.

- Borges recitou Urguiaga?

- Te emociona?

- Na verdade, me surpreende. Adalberto Urquiaga era um homem bom, íntegro e cheio de valores. Mas daí até ser um grande escritor argentino e ao mesmo tempo ser citado por Borges em uma reportagem, tem um longo caminho... Tem certeza, meu filho?!

- Completamente, professor. Letra por letra, verso por verso e sem esquecer um ponto ou uma vírgula. Pude compará-lo com as obras completas de Urquiaga. Eles não me batem por vontade.

- A obra completa? Você dirá uma compilação que fizemos com outros amigos para ver se mataríamos a viúva do desgraçado de fome!

Doroteo Esnaola era um arcaico intelectual que viveu toda sua vida em um bairro de Pompeya, onde havia nascido na década de 30. Seus pais, da primeira frota de imigrantes, compraram a casa em 1929, após uma década de trabalho duro. Também conseguiram enviar Doroteo a Academia de Letras, que não pode terminá-la por conta do golpe de 55.

Antes dos 20 anos, Doroteo havia publicado com o dinheiro de seu pai um livro de poesia com 75 páginas, o número necessário para ser considerado como antecedente no desejo de ter seu cartão da Sociedade Argentina de Escritores. Implorava às pressas para ver dois de seus artigos na seção social dos jornais La Razón e La Prensa para, assim, somar o suficiente para conseguir a cobiçada filiação. O cartão foi assinado pelo então presidente, o próprio Jorge Luis Borges. A alegria de Doroteo foi tanta que o cartão tipo livreto de duas capas com a onerosa foto 4 X 4 gastou de tanto exibi-lo.

Foram tempos difíceis com o título de professor normal debaixo do braço: dava aulas para alunos da 4ª e 6ª série. Com o diploma da escola "Provincia del Neuquén" na rua Pringles; Ele se casou, teve uma filha, um gato como James Joyce ou Fitzgerald, e um chapéu de feltro de abas largas para o inverno e outro para o verão. Mas uma coisa sempre lhe apeteceu naqueles tempos até à morte do amigo Adalberto Urquiaga: os dois iam todas as sextas e sábados à confeitaria Richmond da Florida Street. Os amigos em comum que tinham, como La Torre, Angeli e Juarroz, brincavam que ele e Adalberto eram os novos Borges e Bioy, e que passariam naquela confeitaria para imitar o grupo da Flórida.

Além disso, chegaram a descrevê-los como velhos modernistas ou altruístas anacrônicos em seus poemas, quando a geração dos anos 50 já tentava abrir caminho por outras formas. Surrealismo, imaginismo e invencionismo, uma infinidade de estilos foram experimentados pelos dois amigos entre as cantinas e as horas ociosas do Banco Nación e da Agrícola Ganadera, que era de onde tiravam a manga para alimentar a família e pagar as edições de autor, em uma tipografia no irmão de um amigo em La Boca.

- E me diga – continuou Doroteo com seu entrevistador – você tem um programa de rádio ou trabalha em um suplemento literário de um jornal? Onde isso sai?

- Não, professor, é para a tese final da faculdade.

- E do que se trata esta tese?

- É sobre escritores esquecidos da geração do 50.

O velho poeta sentiu um calor que o sufocou quase a ponto de vomitar. Ele teve que conter sua raiva e evitar a todo custo o constrangimento que seria explodir em insultos contra o jovem estudante. O tremor fino e descontrolado começou. O rosto de Doroteo endureceu e da rigidez como um raio um fio de saliva saiu do canto de seus lábios. O jovem com pressa trouxe o anel de guardanapo para perto dele, o que fez com que o velho o odiasse ainda mais.

- Esta entrevista prematura acabou! — o aluno levantou-se respeitoso e sem palavras, ignorando completamente quando ele desrespeitou o professor — Mas antes de ir, diga-me novamente onde Borges recitou um poema de Urquiaga.

- Em “La vida y canto” —tentava ajustar-se na cadeira—, no ano 79, entre julho e agosto, reportagem número 16, Rádio Rivadavia.

- Não se sente de novo, ele o interrompeu, eles estão vindo procurar esse velho trêmulo e esquecido.

- Não sei o que vou fazer, Doroteo - recordou que Adalberto Urquiaga lhe dissera numa manhã de 1968 no bar da Galería del Este, na Calle Florida -, já que me despediram de La Agrícola, não encontrei emprego. Malena fica desesperada, assim que uma manga entra no pote. As colaborações não são mais pagas; não coloco uma letra de tango há uma década; não sei escrever romance e poesia não se vende nem com paus.

Em que me enganei?, perguntava-se Doroteo tantos anos depois. Paguei-lhe aquele café e comprei uns croissants para os rapazes. Uma semana depois o babaca se matou atravessando a barreira Dorrego, estava bêbado como um cossaco. E agora descubro que Borges recita um poema para ele! Ele deve ter tirado do livro que fizemos para compensar a viúva! Sim, eu sou um idiota; acontece que esse obstinado sem talento serviu o prato quente para combater o esquecimento! Ainda por cima, não vai ser um dos poemas que eu mesmo retoquei! Seria a última desgraça nesta cadeia de injustiças!

 

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