História da Dra. María Julieta Vera Janavel | 01 JUL 23

Um dia de cada vez

Uma história de infância chocante.
Autor/a: María Julieta Vera Janavel  

1.

Olho para as minhas mãos, a pelezinha dos meus dedos me faz parecer um velho. Meus pés estão frios, ainda estão molhados, minhas unhas estão compridas. Não sei quem vai cortá-los para mim agora.

Todas as minhas manhãs começam iguais. Eu acordo sozinho. Desço pela lateral do beliche, subo no colchão do meu irmão e vou rapidamente ao banheiro fazer xixi. Costume que ficou comigo depois de tantas noites me molhando.

As melhores manhãs são quando encontro minha mãe na sala de jantar tomando mate sozinha. Mesmo assim, às vezes, não sei se gosto tanto de encontrá-la assim. Ela encara a luminária e se mexe como se nem percebesse que eu já acordei. Ninguém me conta bem as coisas, ou eu as interpreto mal. É que sou meio lento, já sei disso. É difícil para mim entender as aulas na escola, é difícil saber quanto é o troco quando vou comprar as comidas, e quando falam comigo às vezes me perco.

Quando eu crescer quero trabalhar e não ser um abusador como meu pai. Quando converso com o vovô sempre pergunto como é ser pedreiro. Ele me conta que nunca foi pedreiro, que tem vários trabalhos e às vezes ajuda a construir casas, nada mais. Da próxima vez que ele passar para nos levar à escola, vou perguntar se ele sabe andar de bicicleta. Eu queria perguntar a minha mãe, mas ela não me responde. Tudo que eu pergunto a ela me diz: "Não sei, não sei, Ariel, vai brincar na calçada." E eu vou para a calçada, horas, o dia todo eu passo na calçada... por isso eu poderia usar uma bicicleta. Quando eu vejo um menino passar de bicicleta, ele sempre sai rindo.

Há dias em que, com meu irmão, vamos ao terreno baldio ao lado de Don Gómez, pulamos na vala para brincar com os galhos caídos. Eles sempre nos dão as frutas que estão ficando feias da mercearia. Meu irmão mal fala, mas se faz entender.

Quando estou aqui e vejo as pessoas entrando e saindo do quioesque, começo a pensar. Às vezes brinco com algumas para dizer que me perdi ou que não tenho pais. Sempre acabo ganhando algo para comer ou pelo menos um abraço. No final das contas, todos devem ter passado pela mesma coisa que eu quando tinham a minha idade.

Quando anoitece na vala, o sol entra nos galhos, o vento sul bate nos meus cabelos compridos, começo a me sentir estranho. Minha barriga estala, me dá calafrios... e tenho que ir para casa. Pego meu irmão pelo braço e espio as janelas das outras casas enquanto estamos a caminho de nossa residência. Sinto o cheiro da comida. O que vai ter para comer em casa? Salto sobre buracos e ladrilhos quebrados, ouço alguns insultos e estamos quase na porta. Eu coloco o anão contra a porta como se estivesse a usando como um sino, mamãe abre a porta... papai está lá de novo.

2.

- O que está acontecendo aqui, pelo amor de Deus? Gritos são ouvidos da outra esquina!

O padrasto de Lorena grita ao entrar como se destrancando a porta.

- Solte ela! Segure-se em mim!

Enquanto grita, Lorena cai como um saco no chão, e bate nele também.

E de repente ele fica em silêncio, seu braço esquerdo começa a ficar frio, sua cabeça pesada e suas pernas dobradas.

- Pelo tamanho, é uma 22 - pensa como se quisesse se acalmar com alguma coisa, entre todo o transtorno que sua respiração lhe causa.

Sem pensar, e independentemente do que viu, quando Raúl levanta Lorena para continuar batendo nela, ele bate nele novamente e se obriga a arrastá-la até a porta. De repente, ele sente que toda a sua cabeça está dormente, ele cai no chão e está deitado na sujeira da casa. Entre a poeira, vê-se um lago de sangue, cheiro de pólvora e Lorena chorando ajoelhada ao lado do padrasto, chorando e gritando.

-Socorro, a perna!

-Socorro, chame uma ambulância.

Kevin salta pela porta e vai direto para os braços do papai, fica feliz. Fico na entrada, observo onde está a mamãe e junto a parede vou direto para o meu quarto.

-Olá Ariel, não vai me dar um oi menino?

-Olá papai- respondo e enquanto todos fazem barulho, e me dão frio, e a única coisa que penso é sair para a rua de novo. Mas mamãe pôs a mesa, tem uma panela de ensopado no balcão e ela está preparando um pouco de suco.

Sento-me à mesa, vejo a toalha de plástico e percebo que são flores que estão desenhadas. Quem vai desenhar as toalhas de mesa? Essas flores realmente existem? Enquanto eu fico olhando para a toalha, eles falam comigo o tempo todo e me interrompem para que eu coma, para que eu levante os olhos. Não estou mais com fome e não quero olhar para ninguém. Todos comem a caldeirada com pão caseiro.

Fico com a mamãe arrumando a mesa, eu entrego as coisas e ela lava. De repente ela me abraçou, me puxou para perto de seu peito, eu senti o cheiro da comida que preparou, com uma das mãos agarrou minha cabeça e a curvou até ficar embaixo de seu queixo e aí fez alguns sons ocos como espasmos. Eu dormiria lá. Mas me manda direto para o beliche e eu vou embora. Amanhã será outro dia.

Acordo no meio da noite, estou todo molhado, estou com frio. Pela porta ouço os gritos e insultos. Não sei o que fazer. Saio da cama e entro na cama do meu irmão, tirando a roupa molhada para o lado. Mas Kevin também está acordado, seu corpo está tremendo e ele está respirando com dificuldade, ele me pergunta se mamãe está bem. E aí eu ouço aqueles barulhos. Saio do meu quarto e encontro minha mãe chorando no chão, um monte de garrafas e a porta aberta. Fecho a porta e olho para minha mãe, seus olhos não se distinguem, seu lábio está sangrando, todos os cabelos em seu rosto. Agarro-a, levanto-a, apalpo-a, acaricio-a. Ela não para de chorar, eu não vou mais para a cama. Lágrimas caem, minha barriga dói, quero abraçar a mamãe, mas ela não deixa, olho para a janela e é de madrugada mas não dentro de mim. Eu só quero que o vovô venha e eu cuide um pouco da mamãe.

3.

- Levante-se para receber o veredicto.

Raúl, com as mãos algemadas para trás e a cabeça baixa, não pode olhar para o juiz nem para ninguém. Mas sente os olhares da mãe e do padrasto de Lorena, marcados pela etiqueta da camisa emprestada que veste.

—Condenado a 7 anos de prisão efetiva por tentativa de homicídio, com uso de arma de fogo.

Muitas vozes são ouvidas, sussurrando e cada vez mais altas no silêncio. Você sente como os pombos batem as asas, até que alguns gritos começam a ficar claros quando a polícia começa a afastá-lo.

É 25 de maio e está frio. Hoje é feriado e não vou à escola. Acordamos quase ao meio-dia. Meus avós vieram antes do almoço e levaram meus irmãos, Kevin e eu ficamos com minha mãe. Ela nos disse que nos comportamos mal ontem... tudo porque acertamos o gordo Medina com uma bola. O gordo gritou, a mãe nos acusou, então ficamos com a mãe.

Antes de sair, meu avô disse bem baixinho para minha mãe que meu pai está solto de novo, por favor, não confie nem em abrir a porta para ele, sua voz falha, ele aperta o braço dela com força e sai. Eu o escuto, finjo que estou distraído, Kevin olha para mim e puxa minha camisa, digo a ele como se não fosse nada, balançando a cabeça para os lados.

 

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